Válvula de Escape

Lucas Seixas/The Players' Tribune
Em parceria com
Adidas

Caramba, só agora caiu a ficha que essa é a primeira vez que eu comemoro meu aniversário longe da família e dos amigos.

Nunca tinha acontecido isso antes. Coisa maluca. Normalmente, nessa altura do ano, já de férias da temporada na Europa, eu estaria em Itu descansando, pescando… Mais precisamente ouvindo e contando uns causos na beira do rio com meu pai, meus primos e rindo de rolar no chão até espantar todos os peixes.

Aí minha mãe prepararia um bolo cheio de velinhas, faria todo mundo pra cantar o Parabéns, eu ficaria meio sem graça e pronto! Mais um aniversário perfeito, ao lado das pessoas que eu amo e ainda com algumas semanas de folga antes de voltar com tudo pra Londres e pro Arsenal. 

Mas este ano é diferente…

Tô aqui na concentração do Brasil pra Copa América, nos Estados Unidos. Outro ambiente, outro momento, outros sentimentos. O que eu sinto? Bom… sinto orgulho e — pra que esconder? — um pouco de ansiedade pra representar o meu país em mais uma competição importante.

Uns dias atrás, no café da manhã, eu estava viajando nesses pensamentos quando chegou o Gabriel Magalhães com aquele jeitão zueiro de Pirituba dele: 

— E aí, fera, quais os planos pra comemorar os 23 anos?

Pensei comigo: Planos, não, cara. Plano. Porque eu só tenho um. 

Meu plano é pegar a Argentina na final. E vencer, lógico!

Pô, eu sonho com isso desde que comecei a jogar bola com seis anos de idade. E digo numa boa, porque respeito os caras, respeito os outros adversários, sei que eles nos respeitam e o caminho é longo e difícil pra todo mundo. Mas Brasil x Argentina é de outra dimensão, tá de sacanagem. 

Eu adoro jogo desse tamanho. Camisas pesadas, jogadores de muita qualidade nos dois lados, Messi, Raphinha, Álvarez, Andreas, Di María, Douglas Luiz, Mac Allister, Magalhães, Emi… Tá maluco! Aí alguns vão me perguntar: Mas e a pressão de encarar os atuais campeões do mundo numa decisão?

Pra ser sincero, eu tô louco pra sentir essa pressão de um Brasil x Argentina, talvez a mais pesada no futebol de seleções. É que sei lá… De alguma forma eu acho que aprendi a transformar pressão em combustível, energia. Procuro sempre enxergar o lado positivo dela, crescer, extrair coisas boas. 

O que eu sinto? Bom, sinto orgulho de representar o meu país em mais uma competição importante.

Gabriel Martinelli

Porque vê só… Pressão pode ser uma responsabilidade: por exemplo, carregar com você a esperança de milhões de torcedores que pintaram a rua de verde e amarelo e penduraram bandeirinhas na garagem pra acompanhar uma Copa do Mundo. Você vai fazer de tudo pra não decepcionar esses caras. Pressão pode ser uma bênção: realizar seu sonho de garoto, que é o sonho de tantos e tantos garotos e garotas brasileiros iguais a você. Pô, só tenho que agradecer a Deus por tudo que aconteceu em minha vida. E pressão pode ser um privilégio: disputar o título do campeonato mais forte do mundo nem se compara à pressão de um pai ou uma mãe sem trabalho que volta pra casa contando a grana pra levar um leite pros filhos. 

Eu penso muito nessas coisas. No que é de fato a pressão, como ela age em mim, como ela já me atrapalhou (sou de carne e osso, às vezes acontece) e como aguentei firme e segui em frente. Vai ver eu penso muito nisso porque ela é parte de mim, do que eu sou. Eu nasci dentro de uma panela de pressão! Acham que eu tô brincando? Então deixa eu contar rapidinho o meu “caso de amor” com a pressão pra vocês.  

Meu pai sempre sonhou com um filho jogador de futebol. Eu nasci quando ele já estava com 40 anos, e esse desejo continuava mais forte do que nunca. Acho que a primeira frase que eu entendi na vida foi a que ele sempre repetia: “Quando você fizer seis anos, eu vou te levar pra fazer um teste”.

Não fazia ideia do que era teste, muito menos quando teria seis anos. Mas ele repetia sempre. A gente ia brincar de futebol na pracinha lá em Guarulhos e meu pai me mostrava como pegar na bola, como proteger, insistia pra eu chutar com força com a perna esquerda também… Se ele não estava de brincadeira, eu logo entendi que futebol era a coisa mais divertida de se fazer na vida. Comecei a amar aquele negócio. Imagina só, um molequinho com o pai sempre presente, incentivando, encorajando, os dois compartilhando momentos felizes, pô, era maravilhoso.

Gabriel Martinelli Adidas
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Então eu fiz seis anos e a memória mais nítida que eu tenho daquela semana é da quadra de futsal do meu primeiro time. Enorme, gigantesca. Conforme o planejado, ali estava eu, um molequinho que mal conseguia dar o laço no tênis, fazendo o tão sonhado teste. Foi mágico entrar no Parque São Jorge de mãos dadas com meu pai, ter ele o tempo todo ali ao lado torcendo por mim enquanto, dentro da quadra, eu tentava lembrar das coisas que ele tinha me ensinado a fazer com a bola. Passei no teste e pelos sete anos seguintes a minha vida seria essa: um sonho, agora duplo, de pai e filho, começando a virar realidade. 

Um pouco mais adiante eu comecei a entender o que era pressão e como driblar ela. Quando eu jogava mal e na volta pra casa meu pai ficava reclamando, dizendo que eu podia ter feito assim ou assado, eu simplesmente fingia que estava dormindo no carro. É claro que ele queria o meu melhor, sabia do meu potencial, mas, quando pesava demais, eu preferia não ouvir.

Porque, mesmo muito novo, a gente sabe quando não vai bem numa partida. Eu saía decepcionado comigo mesmo por tão ter conseguido dar mais e por isso já me pressionava o suficiente. Não queria discutir com meu pai. Então, “cochilando” no banco de trás, eu deixava ele falar sozinho e só ouvia. Absorvia os puxões de orelha dele, que, no fundo, eu também logo entendi, tinham uma finalidade: não deixar eu me acomodar, me fazer botar os pés no chão e continuar treinando forte. 

E hoje, jogador do Arsenal, de Copa do Mundo, Champions, Copa América, eu me reconheço demais naquele moleque de 15 anos atrás. Pois continuo sendo um cara tranquilo e focado. Vem daí a força do meu futebol. Pode ser na pracinha em Guarulhos, no ginásio de futsal, pode ser em estádio vazio na pandemia, pode ser no Emirates com 60 mil torcedores gritando por nós, ou no Old Trafford com 75 mil gritando contra nós. Eu quase sempre desligo do mundo exterior quando estou jogando. Procuro pensar positivo, pensar que não estou ali de favor, que eu fiz por merecer. É concentração 100% no que eu sou capaz de realizar pra ajudar meu time a vencer. É só isso e mais nada. O campo é o meu casulo.

Afinal de contas, “treinei” bastante naquelas voltas pra casa com meu pai pegando no meu pé no carro, é ou não é? Tanto que até demorei pra me ligar na musiquinha que a torcida do Arsenal canta pra mim, o que é uma baita honra. Agora, quando eu ouço a cantoria durante o aquecimento pro jogo, fico arrepiado e até um pouco preocupado: Será que o coração do meu pai vai aguentar tanta emoção?

Segura aí, pai! Foi você que começou com isso… kkkkkkk…

Bom, mas voltando… Quando eu tinha 13 anos rolou uma imensa reviravolta na minha vida. Meu pai conseguiu um emprego melhor em Itu e nós tivemos que nos mudar. Deixei pra trás tudo o que eu conhecia, gostava e me deixava confortável: meus amigos, a minha escola, a minha casa, a pracinha e a quadra de futsal. Foi um baque pra mim. Passei a treinar no Ituano, que, apesar de ter uma ótima estrutura, era bem diferente. 

Gabriel Martinelli Players Tribune
Lucas Seixas/The Players Tribune

Naquela nova realidade, num clube pequeno do interior, se eu não quisesse ser esmagado por uma espécie de autopressão, eu só tinha uma opção: manter a mesma vontade, o mesmo foco e a mesma determinação que tinham me moldado até ali. Se eu mesmo não fizesse isso por mim, ninguém mais faria.

Com pouco tempo no Ituano, ainda com 13 anos, fui chamado pra fazer um teste no Manchester United. Ali sim eu senti a pressão. Esmagadora. Eu era muito novo e tudo era novo demais pra mim. O frio, a cerimônia num clube daquele tamanho, o idioma, a primeira vez tantos dias longe da minha mãe… Tudo pesava e nada parecia divertido. Pra completar, uma tremenda expectativa de conseguir fazer tudo direito e ser aprovado tirava a minha tranquilidade.

No fim não deu. Eu não consegui “cochilar no banco de trás” e a pressão me venceu. Fui mal no teste, dispensado e voltei pro Ituano meio inseguro sobre o meu futuro no futebol, sem saber de onde tirar força pra continuar fazendo o que eu mais gostava na vida. Uma opção era desistir de tudo, ir fazer uma faculdade e… continuar inseguro sobre o futuro, quem sabe descolar um emprego que eu passaria o resto dos meus dias fazendo sem gostar. Então eu respirei e continuei treinando.  

Quando fiz 17, o United me chamou de novo. Agora, em vez de nervoso, eu fiquei muito empolgado. Trombei o Pogba, o Juan Mata, o McTominay e outros caras do videogame no refeitório, consegui treinar bem, estava certo de que ficaria por lá. Além do mais era a segunda oportunidade que eles me davam. Alguma coisa tinham visto em mim.

Nada. Me mandaram pra casa de novo. Na volta, ainda passei 15 dias no Barcelona, o suficiente pra tomar outro não. Só que algo tinha mudado.

Eu não me senti sem esperança. Um pouco triste, talvez. Mas pela primeira vez eu tive consciência de que a minha força também podia vir da dificuldade. Ou melhor, de eu conseguir extrair energia, concentração e serenidade dela. Se na vida nem tudo são flores, eu posso me esforçar pra desviar dos espinhos. Essa é a minha natureza. E eu fiquei feliz de descobrir. 

Um ano depois, quando o Arsenal me chamou pra testes também, eu estava mais fortalecido, eu acho, apesar da pouca idade. Eu tinha 18. Era a minha terceira vez na Inglaterra, no frio, longe da minha mãe e mais perto do que nunca do meu sonho. Eu também sabia exatamente como me sentiria e como reagiria se me mandassem pra casa outra vez. Então eu cheguei em Londres numa pegada, tipo… “Vai que é sua, Gabi! A bola tá com você. Mais uma chance de ser protagonista da sua história.” E dessa vez rolou.

Me transferi pro Arsenal com a certeza de que, se eu continuasse sendo eu mesmo, fiel à minha essência, focado e sereno, pressão nenhuma me impediria de encontrar um jardim inteiro de flores no norte de Londres. Tem sido uma jornada e tanto. O time fica mais consistente a cada temporada e eu estou certo de que nós vamos dar um título da Premier League pra nossa torcida. E da Champions também. 

Gabriel Martinelli camisa Arsenal
Lucas Seixas/The Players' Tribune

Outro dia me perguntaram se eu senti medo no meu primeiro jogo pelo Arsenal. O quê?? Medo?! Tá maluco? Eu senti foi orgulho. Jogar no Arsenal é uma parada tão maravilhosa que eu nem consigo explicar. Eu me sinto muito à vontade, feliz, leve, como se chegasse na casa da minha avó no domingo pra comer uma lasanha, meu prato preferido.

Mas preciso dizer que no começo foi complicado. Grandes mudanças são meio traumáticas pra mim. Fico me fazendo perguntas demais, acho que por ansiedade. Tipo… Como é o treino? Será eu eu posso fazer isso? Fazer aquilo? Quando eu tiver uma dúvida sobre posicionamento em campo, pergunto pro mister ou pro assistente dele? Como novato, se eu ficar pedindo a bola vão me achar inconveniente? Essa é, vamos dizer, uma pressãozinha meio chata. Se você não fica esperto, ela te consome e toda aquela empolgação acaba virando frustração.

Aí, nessas horas, o mais importante é contar com alguém pra te ajudar. Sozinho, não dá. Alguém com sensibilidade pra sacar que você tá meio perdido e se dispõe a dar uma força. Foi assim que eu aprendi outra lição valiosa: o companheirismo também é um bom remédio contra a pressão no futebol. Uma válvula de escape, sabe?

Meu plano é pegar a Argentina na final. E vencer, lógico. Eu sonho com isso desde que comecei a jogar bola com seis anos de idade.

Gabriel Martinelli

Logo que cheguei no Arsenal, um anjo veio tomar conta de mim. Um anjo argentino, mas beleza… kkkkkk. Era o Emiliano Martínez, um dos nossos goleiros na época. Pô, o Emi foi firmeza total. Às vezes as pessoas acham que ele é meio marrento, meio folgado, mas não é nada disso. O cara é muito parceiro, tem bom coração e foi importante nessa minha chegada ao time.

O Emi fala português, então me ajudava na comunicação. Me explicava como o dia a dia no clube funcionava. Me apresentou pros funcionários. Passava de carro em casa pra gente ir pro treino, ou pro Emirates em dia de jogo, depois me levava de volta. Na primeira temporada ele convidou a minha família inteira pra passar o Ano Novo na casa dele. O cara me acolheu mesmo, cuidou de mim como se fosse meu irmão mais velho. 

Mas, Emi, meu amigo… Não leva a mal, mas preciso te dizer que… irmão faz gol em irmão — e eu tô doido pra marcar contra você nessa Copa América.… kkkkkk… A minha mãe até briga comigo por causa disso, sabia? 

“Mas, Gabi, você vai fazer gol no Emi?! Justo no Emi, depois do tanto que ele te ajudou quando você chegou em Londres?!”

Ah, mãe, eu vou sim. Se a oportunidade pintar, não posso desperdiçar. É Brasil x Argentina. Os caras são os campeões do mundo. Deixa eu jogar um pouco de pressão neles ;-)

Autografo Gabriel Martinelli

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