Passando Algumas Coisas a Limpo
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Eu já estava de malas prontas.
Passaportes na mão.
Tinha chegado ao meu limite no Arsenal. Fim da linha. Havia um contrato na mesa de outro clube, e tudo que eu tinha que fazer era assinar. Conversei com minha esposa, Leonita, e decidimos ir embora.
Eu ia me despedir de Mikel Arteta, e depois pegaríamos o avião.
Isso foi em dezembro de 2019. Dois meses antes, bem... Você sabe o que aconteceu. Tantas coisas foram ditas sobre isso, então acho que é hora de finalmente passar tudo a limpo.
Primeiro, quero deixar bem claro que amo o Arsenal. Eu sempre amei e continuo amando. Darei tudo por esse clube até meu último dia aqui. Também sei que algumas pessoas não gostam de mim. Isso faz parte do futebol e eu entendo.
Mas naquele jogo contra o Crystal Palace, as coisas passaram dos limites. A gente estava ganhando de 2 a 0, mas eles empataram. Fui substituído no segundo tempo. Eu mal tinha começado a andar em direção à beira do gramado quando ouvi as vaias. E não eram apenas alguns caras na lateral — eram muitas pessoas. Fiquei chocado. Eu nunca tinha experimentado algo assim. Quando cheguei perto do túnel, olhei para os torcedores na arquibancada — e essa é a parte que sempre vou lembrar.
Quando fecho meus olhos agora, ainda consigo ver seus rostos. Eu consigo ver a raiva deles.
Não é que eles não gostem de mim. Não, é diferente.
Isso é ódio. Puro ódio.
E eu não estou exagerando.
Olha, eu nunca tive problemas com críticas. Xhaka foi uma m**** hoje? OK. Sem problemas. Mas ser vaiado por sua própria torcida? Como capitão? Isso é diferente. Isso é sobre respeito. Essa palavra sempre foi importante para mim, desde criança. É algo que herdei da minha mãe. Respeito pelos seus pais. Respeito pelo seu clube, seus companheiros, seus torcedores.
Naquele dia, eu me senti muito desrespeitado. Os comentários cruzaram a linha do aceitável. Parecia algo pessoal.
Sim, eu era o capitão do Arsenal.
Mas também sou um ser humano.
Então, como ser humano, magoado, eu reagi.
Respondi de volta, coloquei as mãos na orelha, e quando saí de campo joguei minha camisa no chão e fui direto para o túnel.
Eu estava errado em fazer o que fiz? Sim.
Mas eu faria algo diferente se acontecesse novamente amanhã? Sinceramente, não sei.
Tenho que ser honesto sobre isso. Eu sou um cara emotivo. Não desejo nem para o o meu pior inimigo esse nível de ódio e desrespeito. Ainda hoje, quando perdemos, detesto caminhar esses últimos metros do campo até o túnel, porque ainda reconheço os rostos. As mesmas pessoas estão sentadas ali.
Então, agora, eu apenas abaixo a cabeça.
Eu vivi esse pesadelo uma vez. E não quero vivê-lo nunca mais.
Meus pais e meu empresário estavam naquele jogo contra o Palace, porque eu negociaria um novo contrato com a diretoria do clube no dia seguinte. Nós nem esperamos o jogo terminar para sair do estádio. No caminho pra casa, ninguém disse uma palavra. Apenas silêncio por uma hora, eu dirigindo. Sem celular, sem palavras, nada. Chegamos em casa e a primeira a falar foi minha mãe.
Ela disse: “Então... o que você quer comer?”.
Mãe, né? Sabe como é… Ela estava tentando me consolar, mas eu podia ver em seus olhos que ela também estava muito triste.
Sim, por 90 minutos eu sou Granit Xhaka, jogador do Arsenal. Mas no resto da semana sou apenas um suíço morando em Londres com a esposa e dois filhos.
- Granit Xhaka
Recebi ligações de alguns caras, como Héctor Bellerín, Bernd Leno e Edu. Essa foi uma sensação boa. Mas então meu pai me falou algo que eu nunca pensei que ele diria.
“É hora de ir embora.”
Era ele dizendo isso. Entende o que isso significa?
Você tem noção do que ele viveu?
Deixa eu contar uma história rápida. Na Iugoslávia, em 1986, um estudante de 21 anos fica noivo do amor de sua vida. Um mês depois, ele é preso por se manifestar contra o Governo pela independência e liberdade de Kosovo. Sua noiva não sabe quando ele vai sair — se é que vai sair, porque nunca se sabe o que acontece nessas prisões —, mas ela espera. Passa um ano, depois outro... Três anos e ela ainda está esperando. Finalmente, depois de mais seis meses, ele é solto e eles se casam. Mas eles sentem que é perigoso para ele ficar, então eles começam uma nova vida no exterior.
Foi assim que chegaram à Suíça, onde eu nasci.
Toda vez que pergunto ao meu pai sobre essa história, ele se emociona. Isso foi alguns anos antes do início da Guerra da Iugoslávia. Não era uma prisão “normal”. Há muitas coisas que ele ainda não quis me contar.
De qualquer forma, sempre que eu tinha um problema na minha carreira e queria desistir, ele dizia a mesma coisa.
“Nunca desista.”
Nunca.
Apenas continue trabalhando duro.
Quando tinha 14 anos, eu era muito pequeno, muito magro. Os treinadores comentavam sobre meu irmão mais velho, Taulant, e sobre como ele era talentoso — e ele é! E então eles me diziam: “Ouça, você nunca vai se tornar um jogador profissional”.
Para piorar, aos 15 anos, rompi o ligamento cruzado do joelho. Oito meses parado. Voltei e foi um desastre. Pffff… UM DESASTRE! Eu tinha medo de entrar em qualquer dividida. As pessoas faziam todo tipo de comentário.
“Você é uma vergonha.”
“Por que você continua jogando?”
Eu já estava fazendo estágio em um escritório, me preparando para a vida real.
Mas eu percebi que teria uma chance se encarasse o jogo na base do 8 ou 80. É isso!, eu pensei. Vá com tudo ou desista. Era como pôquer, sabe? Tudo ou nada. All in. É assim que eu gosto de jogar. Então eu comecei a treinar e trabalhar duro. Meu joelho melhorou, e isso mudou tudo. De repente, eu estava muito mais confiante. Eu era capaz de jogar meu jogo habitual.
Logo fui chamado para a seleção sub-17, embora nunca tivesse sido convocado em nenhuma outra categoria antes. Eles me chamaram porque um cara tinha se machucado, provavelmente só para ter 11 contra 11 nos treinos. De qualquer forma, nós vencemos a Copa do Mundo sub-17, em 2009. Isso abriu as portas para o Borussia Mönchengladbach. Mas os primeiros seis meses lá? Putz, outro desastre. Após uns 10 jogos, eu continuava no banco.
Isso foi na temporada 2012-13. Em janeiro, disse ao meu pai: “Quero ir embora”.
— Cala a boca.
— Mas eu vim aqui para jogar.
— Este não é o caminho. A porta está logo ali. Mas qualquer um pode ir embora. Ser forte, trabalhar mais do que o resto, isso é o mais difícil.
Ah, outra coisa sobre meu pai é que ele também é treinador de futebol. Analisamos meus jogos juntos e ele é sempre muito crítico. Posso marcar dois gols, e ele vai dizer: “Sim, mas seu posicionamento aqui foi errado...”. Mas 90% das vezes ele está certo. Normalmente, eu aproveitaria as férias de inverno para visitar minha família no Kosovo. Naquele ano eu fiquei em casa e apenas treinei. Voltei ao time e, na temporada 2015-16, me tornei o capitão. Ou seja, meu pai estava certo, como sempre.
Pra quem esteve numa prisão na Iugoslávia, acho que não parece tão difícil ser reserva num time de futebol.
De qualquer forma, esse é o tipo de relacionamento que temos. Então, quando fui vaiado contra o Palace, e até ele estava me dizendo para ir embora, o que eu deveria pensar?
Como todos sabemos, fiquei afastado do elenco e perdi a braçadeira de capitão. Quando Mikel foi contratado, em dezembro, eu disse a ele que queria sair. Ele entendeu perfeitamente. Tivemos uma segunda conversa alguns dias depois e, quando entrei, já havia conversado com minha esposa. Nossas malas foram literalmente colocadas na porta.
Quando tomo uma decisão como essa, é muito difícil mudar de ideia. Mas então Mikel começou a falar sobre como eu era importante em seus planos. O entusiasmo dele me cativou. Ele era honesto, direto. Ideias claras. Senti que podia confiar nele. Ele me pediu seis meses para provar que eu estava errado, e então, se eu ainda quisesse ir embora, sem problemas.
Normalmente levo muito tempo para tomar essas decisões. Converso com todos ao meu redor, peso os prós e contras. Mas naquele dia eu quebrei minhas próprias regras.
Eu disse ao Mikel: “OK”.
Liguei para minha esposa e meus pais. “Nós vamos ficar.”
Eles ficaram tipo: “De jeito nenhum”.
Eu disse sim. Vamos desfazer as malas. É um novo desafio. “Ou vocês ficam comigo, ou eu fico sozinho, porque vou continuar aqui.”
Claro, eles ficaram comigo. Mas foi tão difícil, cara. Toda essa m**** que aconteceu. Todo mundo dizendo: “Por que você não sai já?!”. Meu pai já tinha entregado os pontos: “Chega”. Então por que voltar atrás? Porque eu senti que era maduro o suficiente para tomar essa decisão por conta própria. Eu ia deixar aquelas pessoas fazerem isso do jeito delas? Aquelas pessoas que pensam que eu sou inútil? Que me odeiam? Não. Isso não é quem eu sou. Minha cabeça deixou o Arsenal, mas meu coração, não.
Meu coração estava me dizendo: Você não pode deixar esse clube assim.
Mikel e eu não falamos sobre meu futuro novamente, porque depois de seis meses eu estava feliz. Hoje sei que tomei a decisão certa, absolutamente, porque ainda estou aqui. Mas não posso fingir que meu relacionamento com os torcedores será o mesmo, porque esse momento ficou guardado no meu coração.
É como vidro quebrado, sabe? Você pode juntar os cacos, mas as rachaduras sempre estarão lá.
Eu gostaria que a gente tivesse um relacionamento melhor. Gostaria que a gente se entendesse melhor. É exatamente por isso que estou me abrindo dessa maneira. Eu sei que nós, jogadores, somos privilegiados, mas vocês precisam entender que nossa vida também pode ser muito, muito complicada. Claro, os torcedores nunca ficam sabendo dos nossos problemas, porque nunca conversamos nem fazemos nada juntos. Para vocês, somos apenas jogadores correndo atrás da bola por 90 minutos e depois “adeus!”. Mas não acho isso certo.
As pessoas dizem: “Mas esse é o seu trabalho, você ganha muito dinheiro pra isso”. Sim, eu sei.
Mas se um membro da sua família morre, como você se sente?
E se sua esposa tivesse acabado de dar à luz e amanhã você tivesse que jogar uma final em Baku?
Isso é fácil? Para mim, não é. Sim, o dinheiro é importante, mas não é tudo.
Então, vêm as críticas. Acho que muitos jogadores aqui na Inglaterra estão assustados com a proporção delas. Eu posso lidar com isso — o dia que eu não puder, eu paro de jogar. Mas digo honestamente que é mais fácil para mim jogar pela Suíça, porque sinto mais carinho lá. Você comete uma falha? Tudo bem, acontece. Mas aqui? Eles te matam. É inacreditável.
Uma semana é: “Ah, ele é tão bom!”
Na semana seguinte: “Ele é uma b****!”.
Então os jogadores entram em campo assim: Ah, hoje eu não posso errar.
Quando estamos em má fase, eu sei o que as pessoas dizem sobre mim. Agora, quando jogamos bem, ninguém diz nada, mas eu sei o que as pessoas pensam. Não esqueço o que ouço sempre.
“Ele recebe muitos cartões.”
“Ele está matando nosso time.”
Cara, levar cartão sempre fez parte do meu jogo. Também era assim na Alemanha. Lembra do 8 ou 80? Comigo é sempre all in, inclusive nos treinos. Se eu der uma cotovelada em um jogador, serei o primeiro a dizer: “Foi mal”. Mas uma dividida? Fala sério, isso não é balé.
Hoje sei que tomei a decisão certa, porque ainda estou no Arsenal. Mas não posso fingir que meu relacionamento com os torcedores será o mesmo.
- Granit Xhaka
“Sim, mas acontece com muita frequência.”
Então deixa eu te fazer uma pergunta: Por que os treinadores continuam me escalando? Por que eu sou um “bom rapaz”? Não, não. É porque eu treino e trabalho duro para ajudar meus companheiros. Porque eu acredito que você joga do jeito que você treina.
Acho que algumas pessoas nem assistem aos jogos antes de nos criticar. Teve uma partida que perdemos em casa. Eu estava machucado, então assisti o jogo de um camarote. E recebi um monte de mensagens do tipo: “Você estava uma m*** hoje”.
A propósito, tenho um recado para os haters: você pode dizer o que quiser sobre mim, mas não mexa com minha família, beleza? Minha esposa, meus filhos, meu irmão, meus pais, eles não têm nada a ver comigo. Tudo tem limite. Se você quer criticar alguém, por favor, vá criticar o cara no campo.
Como eu disse, quando a gente está ganhando é tranquilo. Mas assim que perdermos duas seguidas, as mesmas pessoas estarão de volta, 100%.
Mas não vou mudar por causa de um cara que está escondido atrás do teclado ou do celular. Sem chance.
É engraçado que, na vida real, quando não estamos indo bem como no início desta temporada, ninguém nunca me disse: “Você é uma b****”. Nunca. Ninguém diz isso na minha cara. O que eles dizem? O habitual. “Ah, você é o melhor, você joga muito…” Algumas pessoas falam sério, mas outras vão pra rede social depois: “Fora do nosso clube!”. Então, da próxima vez, diga na minha cara. “Granit, hoje você estava uma m****.” Sem problemas! Eu prometo, vou levar na boa. Respeito uma crítica honesta, mas não tenho saco para mentiras.
Essa é uma das piores coisas de ser famoso. As pessoas não conseguem ser verdadeiras com você, e eu realmente gostaria que não fosse assim. Sou uma pessoa normal, assim como você.
Sim, por 90 minutos eu sou Granit Xhaka, jogador do Arsenal.
Mas no resto da semana sou apenas um suíço morando em Londres com a esposa e dois filhos.
Não quero viver de forma diferente. Eu não peço toda minha comida em casa. Eu não ando com uma equipe de segurança de 10 homens. Não, não, não e não. Só porque sou famoso, tenho que mudar tudo? Sem chance. Se eu for a uma festa, estarei no meio da pista. Se minha família quer comer em um restaurante, eu vou. Se meus filhos precisam fazer um lanche, vou ao Sainsbury’s. É assim que eu quero viver.
Mas há algumas coisas que eu simplesmente não posso fazer. Se as crianças quiserem comer no McDonald’s, eu não posso ir, porque alguém vai filmar e colocar no Instagram, e amanhã estarei nos jornais. Vou me preocupar com o que os outros estão dizendo. Isso para mim é totalmente errado, mas é a realidade.
Claro, sou grato por ser um jogador de futebol profissional. Mas fora de campo, posso dizer honestamente que eu tinha uma vida pessoal melhor antes do que tenho agora.
Naquela época eu era apenas Granit. Eu era eu.
Obviamente, não sou mais capitão do Arsenal. Mas posso te prometer que ainda agirei como um capitão, mesmo sem a braçadeira. Isso é possível. Recebo muito apoio dos meus companheiros e de todos no clube, e sou muito grato por isso. Eu sempre vou ajudar os mais jovens e assumir a responsabilidade pelo nosso desempenho.
O Arsenal ainda mora no meu coração, 100%. Meu desafio nunca foi mudar a opinião das pessoas sobre mim, mas sim ajudar a equipe. E depois disso, se alguém mudou de ideia por causa disso, maravilha.
Entendo que nunca seremos melhores amigos, mas espero que possamos nos tratar com honestidade e respeito. Eu quero que saibam que tudo o que eu faço em campo é tentando dar o meu melhor.
Se eu chego atrasado numa dividida, é porque estou lutando pelo Arsenal. Se perco a cabeça, é porque me importo.
Às vezes, talvez eu me importe demais.
Obviamente, nunca se pode prever o futuro no futebol, mas eu sei de algumas coisas. Depois desta temporada, tenho mais dois anos de contrato.
Eu ainda amo esse clube.
Acredito que Mikel está construindo um grande time.
E eu quero conquistar algo especial aqui.