Como Escapamos da Guerra na Ucrânia
Faz uma semana que chegamos ao Brasil, mas as cenas que vimos na Ucrânia ainda não saem da minha cabeça. Eu acho que nunca vão sair, pra falar a verdade. Ninguém tem noção do que se passa numa guerra até estar no meio dela.
Como eu fui parar no meio da guerra entre Rússia e Ucrânia? É uma longa história…
Antes de contar um pouco mais, eu quero dizer que você não precisa ter a casa bombardeada ou ver aviões disparando tiros do céu para sentir os horrores de uma guerra. Não, a gente não vivenciou nada do tipo durante a nossa fuga. Mas nós nos deparamos com um povo e um país abalados pela incerteza.
Quanto tempo a guerra vai durar?
Um míssil vai atingir o prédio?
As sirenes podem tocar de novo?
Até quando teremos luz, combustível, água… comida?
Por uma semana, todas essas dúvidas passaram pela nossa cabeça. A cada dia, a cada hora, a cada minuto. Assim como os ucranianos, nós nos sentimos totalmente vulneráveis e reféns da incerteza por causa de uma guerra que começou do nada.
Jamais eu poderia imaginar que viveria uma situação parecida. Ser um atleta é tudo o que eu sempre sonhei na minha vida. E a gente espera muita coisa do futebol, menos que ele te leve para um lugar tão ameaçador e perigoso.
Que o futebol estaria no meu caminho, eu nunca tive dúvida. Desde que eu nasci, por assim dizer. Meu pai me deu o nome de Leovigildo Júnior. Para quem não sabe, foi uma homenagem ao Júnior, ex-jogador do Flamengo. Nem preciso falar que meu pai era flamenguista doente, né? Hahaha. Na região da minha cidade, Santana de Cataguases, a maioria das pessoas torce para os times do Rio de Janeiro, apesar do nosso sotaque entregar que somos mineiros.
Foi onde eu cresci acompanhando e jogando futebol amador, até ter a oportunidade de atuar em Santa Catarina. Não foi fácil sair de casa aos 16 anos, mas, como eu tinha o sonho de me tornar jogador, sabia que teria de abdicar de muitas coisas.
Nesse período, eu ainda jogava de atacante, mas um treinador percebeu que eu tinha potencial para ser um bom lateral-esquerdo. A mesma posição do Júnior, o cara que inspirou meu nome e que um dia, sabendo da história, enviou um vídeo me desejando sorte na minha jornada pelo futebol. Ver o grande ídolo do meu pai me incentivar dessa forma foi muito especial para mim.
Então, virei profissional no Metropolitano e disputei a Série C do Campeonato Brasileiro pelo Tupi, de Juiz de Fora, mas a grande virada da minha carreira aconteceu na época em que eu defendia o Salgueiro, de Pernambuco. Lá conheci a Vitória, minha esposa, e recebi uma oferta para jogar na Macedônia.
Era a porta de entrada que eu tanto sonhava para o futebol europeu.
Depois de dois anos, surgiu a proposta do Zorya para disputar o Campeonato Ucraniano, uma liga de maior visibilidade. Custei a me adaptar no início, mas aos poucos nosso time conseguiu alcançar objetivos maiores e participar de competições europeias, como a Liga Europa.
Quando cheguei, o Zorya já não jogava em Luhansk, sua cidade de origem, por causa dos conflitos envolvendo grupos separatistas na região. Nossos jogos aconteciam em Zaporizhia, um pouco mais distante da Rússia.
Como estavam ali desde 2014, nem mesmo os jogadores ucranianos do nosso time comentavam sobre qualquer possibilidade de guerra. Alguns até brincavam com a situação, porque sempre falavam de ameaças de novos conflitos na TV, mas eles nunca aconteciam.
Tanto que na quarta-feira a gente treinou normalmente, para recomeçar a temporada depois da parada de inverno, e ia viajar no dia seguinte pra jogar. Mas, à noite, o diretor do clube mandou mensagem dizendo que a liga ucraniana tinha sido suspensa por 30 dias. Aí já estranhamos aquilo e fomos dormir meio apreensivos. Às 5 da manhã, eu acordo com amigos me ligando para avisar que a guerra tinha estourado.
A verdade é que, apesar das ameaças, pouca gente acreditava que a Rússia invadiria a Ucrânia. Todos nós fomos pegos de surpresa na madrugada.
Meu primeiro pensamento era: Não posso ficar aqui, preciso achar um lugar para sair da cidade. Fizemos contato com a Embaixada do Brasil na Ucrânia, mas a resposta foi desanimadora:
— Fiquem em casa. É o local mais seguro.
“Local mais seguro”? Certeza?
Nossa casa é perto de Donetsk e Luhansk, cidades que já tinham sido invadidas pela Rússia. Logo de manhã começaram a tocar as sirenes alertando que o bairro poderia sofrer ataques aéreos a qualquer momento.
Ninguém tem noção do que se passa numa guerra até estar no meio dela.
- Juninho Reis
Sem saber o que fazer, liguei para o pessoal do clube, que me mandou a localização de todos os bunkers da cidade onde a gente poderia se abrigar. Como não tinha um no nosso apartamento, teríamos que atravessar a rua até o bunker mais próximo, do outro lado do prédio.
E se acontece algo com minha família enquanto a gente atravessa?, eu pensava. Não poderia correr esse risco o tempo todo.
Na sexta-feira à noite, o espaço aéreo da Ucrânia já está fechado e não há mais combustível para viajar de carro. Saímos eu, Vitória, Benjamim, nosso filho de 3 anos, Cristian e Guilherme, outros brasileiros que jogam comigo no Zorya, correndo para pegar um trem que parte em 10 minutos. E nossa casa fica a 15 minutos da estação. Só dá tempo de guardar os documentos e encher uma mala pequena e uma mochila com água e alimentos.
Por sorte, o trem atrasa, e a gente consegue embarcar num dos últimos vagões disponíveis. Vimos uma mulher com uma criança se despedindo do marido, que não pode ir por ser obrigado a lutar com o Exército ucraniano.
Perguntamos, então, para onde o trem está indo, mas ninguém nos dá a resposta. Como se trata de um trem de evacuação, eles não podem dizer o destino para evitar que a informação chegue aos russos. Todos os vagões lotados, uma tensão absurda.
Minha mulher e eu nos revezamos com o Benjamim. Enquanto um de nós dorme com ele na poltrona, o outro deita no chão. Mas eu não consigo pregar o olho durante as 16 horas de viagem. Somente na chegada fomos descobrir nossa parada final: Lviv, que fica a duas horas da fronteira com a Polônia.
Ainda no sábado, alugamos um carro para nos levar até a primeira cidade polonesa, mas só foi possível percorrer 20 quilômetros. A fila de carros para atravessar a fronteira é tão grande que nosso motorista nos deixa ali mesmo. E ainda faltavam 30 quilômetros.
O único jeito era ir a pé. Além da distância, tinha outro problema: nós não estávamos com trajes adequados para a caminhada. Muito, muito, muuuito frio! Nós tínhamos apenas a roupa do corpo e os casacos que levamos de Zaporizhia. E eu só pensava no Benjamim. Se parasse pra descansar e o sangue esfriasse, seria ainda pior para ele. Seguimos em frente, com nosso filho nos braços, carregando mochila e bagagem pelo trajeto.
Já estávamos com bolhas nos pés quando percorremos os 30 quilômetros e, então, descobrimos que, na verdade, ainda faltavam mais 30 para a fronteira. Ou seja, teríamos de caminhar o dia inteiro para chegar.
Só Deus para explicar como a gente conseguiu andar tanto nessas condições.
A quatro quilômetros da Polônia, quando já havia escurecido, somos impedidos de continuar o trajeto pelos guardas da imigração. Eles dizem que a fronteira está fechada. Nessa hora, bate o desespero. Nós não tínhamos mais forças, estávamos morrendo de frio, a temperatura caindo abaixo de zero…
Benjamim, que tinha aguentado firme a caminhada, começa a chorar. Ele realmente estava sentindo muito frio. E a gente não sabia mais como aquecê-lo. Vitória também sentiu bastante. Ela já não podia mais dar nenhum passo, estava com o joelho machucado.
Conseguimos nos abrigar em um café por algumas horas, mas, às 22h, o lugar fechou e ficamos ao relento. Foi o momento mais angustiante para todos nós.
“Meu Deus, o que vamos fazer agora?”, perguntavam os meus companheiros de time.
Cara, eu nunca tinha dormido na rua antes, mas não vimos outra saída a não ser passar a noite ali, à beira da estrada, com outras famílias na mesma situação. Nós catamos todos os materiais que encontramos pela frente — gravetos, pedaços de madeira, plástico, tecidos de roupa e objetos que as pessoas abandonavam pelo caminho — para acender uma fogueira. Foi isso que nos salvou de morrer congelados.
Eu sabia que a gente não resistiria a outra noite como aquela, até porque a previsão do tempo mostrava que iria nevar nas próximas horas. Com dor no coração, decidimos procurar uma carona para retornar a Lviv. Nem conseguia acreditar. Chegamos tão perto da fronteira e fomos barrados.
Ao perceber que a gente estava com o Benjamim no colo, o motorista de um ônibus parou, mas disse que só levaria ele e minha esposa. Já seria um alívio para mim saber que eles sairiam dali, só que, de tanto a Vitória insistir, o motorista permitiu que eu embarcasse. Na hora que subi no ônibus, olhei para o Cristian e o Guilherme. Eles estiveram ao nosso lado durante todo o percurso. Eu não podia deixá-los para trás.
“Vamos descer! Viemos juntos e sairemos dessa juntos”, eu disse para minha esposa.
Finalmente, entendendo o nosso cansaço, o motorista fez sinal para que os companheiros também pudessem subir.
Tivemos mais ajuda de poloneses que nunca nos viram na vida que do Governo do nosso próprio país.
- Juninho Reis
Dormimos num hotel em Lviv e, no outro dia, fomos para a linha de trem para tentar embarcar em direção à Polônia. Logo vimos que seria impossível. Tipo, era tanta gente que nem dava pra nos aproximar dos vagões. Para estrangeiros, então, mais complicado ainda. Só estavam deixando passar mulheres e crianças, e olhe lá…
Voltamos à estação no dia seguinte. Mesma coisa. Impossível de embarcar. E ainda cancelaram dois trens que estavam previstos para aquele dia. A cada hora ficava mais difícil ter uma chance de sair.
No retorno ao hotel, praticamente sem esperanças de deixar o país, soubemos que uma van estava vindo buscar a gente. Um grupo chamado Frente Brazucra, formado por brasileiros que vivem na Europa e se uniram aos poloneses para ajudar no resgate de refugiados, tomou conhecimento da nossa situação pelas redes sociais e mandou a van para nos resgatar. Olha, eu só consigo pensar que foram anjos enviados por Deus. Não tem outra explicação.
Cruzamos a fronteira na terça-feira. Não teve como segurar a emoção — dessa vez, um choro de alegria — quando colocamos os pés na Polônia. Uma polonesa que é casada com brasileiro nos recebeu em sua casa. Sou eternamente grato a Deus e a essas pessoas que nos ajudaram.
Tá vendo como são as coisas? Tivemos mais ajuda de poloneses que nunca nos viram na vida que do Governo do nosso próprio país. Se dependesse da Embaixada brasileira ou do Itamaraty, até hoje nós estaríamos na Ucrânia.
Quem comprou as passagens de Cracóvia para Amsterdam e de Amsterdam para o Rio de Janeiro, por exemplo, foram os empresários que cuidam das nossas carreiras. Para o Governo, um país que estava sendo bombardeado todos os dias era o local mais seguro para mim e para minha família.
Nunca vou esquecer as imagens que presenciamos ao longo dessa saga.
O sofrimento das pessoas nas ruas e estações de trem.
Os comboios, tropas e tanques militares avançando pelas estradas.
As sirenes tocando de madrugada.
As casas sem energia elétrica.
Os carros sem combustível abandonados no meio do caminho.
Os pais se despedindo das esposas e dos filhos para lutar na guerra.
As crianças da idade do Benjamim sofrendo com a falta de água e comida.
O frio de 11 graus negativos.
A fogueira que salvou nossas vidas.
Desde que voltamos pra casa, há uma semana, eu rezo para que a guerra acabe logo e para que o povo ucraniano, que me tratou tão bem durante minha passagem por lá, volte a viver em paz.
Neste momento, estou focado em encontrar um novo clube para jogar e em ficar um tempo no Brasil, aproveitar ao máximo minha família e a tranquilidade de Santana de Cataguases, onde tudo começou.
Onde o Benjamim já fez seu primeiro treino na escolinha de futebol.
Onde sempre será o nosso refúgio.