Carta Para o Meu Pai
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Pai,
eu sei que você vai ficar muito bravo comigo.
Eu sei que você já disse que eu não deveria ficar andando de skate por aí, mas eu não consigo parar.
Mais do que uma diversão, mais do que um esporte, é o que eu mais gosto de fazer.
Só que você não entende assim. E, daqui a pouco, quando chegar em casa, voltando do trabalho, e ver que eu estou me equilibrando no portão, você vai surtar.
Você vai me fazer chorar, pai. Eu só não entendo por que tenho de sofrer.
Consigo acompanhar com os olhos o que acontece em seguida. Você vai até o armário onde ficam as ferramentas e de lá tira uma makita. Eu ainda não entendo, vou apenas sentir. O skate está nas suas mãos e vai sendo partido ao meio. As rodinhas são tiradas fora do shape. Pronto. Agora, não vou mais ficar de castigo. Eu nunca mais vou andar de skate, você diz.
Aos 9 anos de idade, pai, minha tristeza só não é maior do que minha vontade de subir no skate outra vez.
Este é apenas o primeiro obstáculo que vou ter de superar. Já me chamam de Maria-Homem por causa das minhas roupas; os meninos olham como se eu fosse um Tom-Boy porque eu gosto de andar de skate. Eu não ligo. Só quero poder andar de skate novamente.
Então, pai, vou te desobedecer desta vez. Eu não sei qual será a sua reação. Um amigo me empresta um shape velho e outro me passa umas rodinhas usadas. Quando chega em casa, no dia seguinte à destruição do skate, você descobre que não tem como me fazer desistir. Então, você é quem vai se render.
A partir daí, vai ficar de boa e nunca mais vai me proibir.
Agora, pai, eu vou te contar o que aconteceu depois disso. E o que ainda falta acontecer.
Aos poucos, você vai aprender, pai, que o skate não é só mais uma diversão. Perto de casa, as ruas vão ficando estreitas demais para as minhas manobras. Você me leva, então, para uma pista perto do Shopping Aricanduva, próximo da nossa casa.
De repente, você vai ver que todos estão envolvidos nisso. A vó, que me acompanha por horas na pista; as minhas irmãs, suas duas filhas mais velhas, que vão cuidar de mim, levando para andar de skate e tentando me fazer usar roupas que me deixem mais à vontade com o que eu sou; a mãe, que vai me apoiar tanto que nem mesmo parece ligar quando eu me machuco. Eu sei que ela está preocupada, mas só vai demonstrar isso quando os tombos são mais sérios.
Sim, pai, a nossa família é assim, toma conta de mim e aprende a gostar de skate porque entende que é o que eu escolhi para a minha vida. E, sim, eu sei que você tem medo do que possa acontecer comigo.
Eu ainda sou uma criança, você vai me dizer, a sua filha mais nova que chama a atenção de todo mundo porque está envolvida num esporte que ninguém reconhece – ou melhor, um esporte que é visto como coisa de maloqueiro. Confia em mim, pai, isso vai mudar. Até lá, segura firme. Eu nunca vou estar sozinha porque, com o skate, vou ganhar uma nova família. E família de verdade não deixa ninguém para trás.
Então, você vai se surpreender quando, anos depois, o Rogério, pai de outro amigo, chegar em nossa casa e falar de mim como skatista. Ele vai te convencer da minha capacidade e daí você vai me ver competir.
Todo mundo de casa vai, também. Será minha primeira vitória. E a partir desse dia, pai, você se tornará meu maior fã e até mesmo vai arriscar pegar uma pista (ok, não vai dar tão certo assim). Mas o importante é que você não vai deixar de me acompanhar. E o seu apoio será fundamental para o que acontece em seguida. Minha vida vai mudar, pai. Pode acreditar.
A única coisa que eu vou querer nessa época é andar de skate todos os dias, mas eu ainda não sei da força do esporte fora do Brasil. Eu até assisto os X Games pela TV, mas não tenho a dimensão do que o skate representa no exterior. Para mim, o skate é só um brinquedo de rua.
Por isso, fico surpresa quando um amigo leva um DVD para eu assistir. São só meninas andando de skate nos Estados Unidos.
Você vai ver, pai, os meus olhos brilharem. Nesse dia, sou eu quem vou descobrir que não só o skate é aceito fora do Brasil, mas também que eu poderia me tornar profissional.
Sim, eu já sei, o Bob Burnquist e o Sandro Dias são os caras. Só que eles são homens, né? Agora, uma mulher andar de skate profissionalmente? Isso ainda não passa pela minha cabeça. Então, fico animada com o vídeo. Eu não tive essa figura, pai, e talvez por isso tenha sido tão difícil para mim no começo. Não tinha ninguém em quem eu pudesse me espelhar.
O DVD mexe com a minha cabeça porque finalmente eu vou compreender que, para ser skatista profissional, eu terei de sair do Brasil.
Você também vai entender isso, pai. Aos 14 anos, eu recebo o convite para participar dos X Games. É um sonho. Eu nunca imaginei que pudesse ser convidada para um evento tão grande.
Só que eu tenho um problema. Os meus patrocinadores – pois é, eu já tenho patrocínio – não querem me apoiar. E você, pai, vai fazer a diferença. Até o último dia, você insiste para que eu vá e, inclusive, briga com esses patrocinadores. Você vai me dizer que é uma oportunidade única e que talvez nunca mais seja chamada novamente. Mesmo com as pessoas dizendo que eu sou muito nova, muitos querendo me deixar do lado de fora, você não vai me abandonar, pai.
Nunca vou me esquecer.
Você não se abala com isso e me dá confiança para seguir em frente, para buscar minha primeira experiência internacional. E talvez você ainda nem possa imaginar, mas essa será a parte mais difícil. Ficar longe de você e da mãe. Longe das minhas irmãs. A nossa casa, na zona Leste de São Paulo, estava sempre cheia e, a partir desse momento, eu estaria num outro país, tentando falar, no começo, uma língua diferente. Vai levar tempo para eu poder me adaptar. Serão dias de luta, mas os dias de glória logo vêm, pai.
Nos Estados Unidos, as coisas demoram para acontecer. No meu primeiro ano, ainda vou precisar entender como funcionam a vida e o skate em outro país. Você estará sempre ao meu lado, pai, falando comigo por telefone. E aí o negócio fica sério.
Como não tinha mais patrocinadores, preciso voltar à estaca zero. O nível nos Estados Unidos é muito mais alto que no Brasil. Não é mais só ir pra rua. É o meu trabalho, agora. Tenho que treinar, tenho que fazer melhor.
Até eu me acostumar, vai levar tempo, pai. E só depois de quatro anos é que vou conquistar a primeira medalha.
Antes disso, eu me machuco pra valer. Para você não ficar tão preocupado a ponto de querer me proibir de andar de skate de novo, vou te dizer que não foi nada grave. Mas aqui eu te conto como realmente aconteceu.
Era um gap bem famoso e eu pensei “vou conseguir”. Na primeira tentativa, cheguei perto. Na segunda, quase acertei. Na terceira, PLAU!
Caí com o pé no meio do skate. Trincou, mas não chegou a quebrar. Ufa! Mas foi um período bem difícil porque, pela primeira vez, tive de colocar meu pé no gesso. Para ir à escola, eu precisava de muleta.
A boa notícia é que, depois disso, vou me quebrar tantas vezes que nem vai ser mais surpresa. Hoje, já tô até acostumada.
Devagarzinho, vou conquistando espaço e, em 2015, chega a minha grande oportunidade. Sim, pai, eu já ganhei muitas coisas na vida, principalmente no Brasil. Só que nesse ano acontece muita coisa fora do skate que vai ser difícil de engolir.
Eles vão dizer que eu pertenço ao mundo da moda.
Eles vão dizer que eu sou musa fitness.
Eles vão dizer que eu não quero mais saber de skate.
No fundo, eu sei quem eu sou e o quanto eu tive de deixar de lado para viver o meu sonho. Eu abri mão da minha família. Eu abri mão de poder estudar. Eu abri mão de poder viver e curtir como as outras pessoas fazem. Não, eu não estou reclamando. Essas foram as minhas escolhas. Mas não vem dizer que eu não quero mais saber de skate. Eu jamais abri mão.
Mesmo assim, esse papo me incomodava.
Depois de tantos obstáculos, acho que ainda falta superar o do reconhecimento do skate feminino.
- Leticia Bufoni
Então, quando eu ganhar o Street League naquele ano, eu vou chorar muito, pai. É sobre isso. Sim, eu não sou de chorar quando ando de skate. O choro não é de tristeza. Tem a ver com a sensação de que um peso está saindo das minhas costas.
Depois dessa conquista, eu vou me sentir ainda mais confiante para fazer qualquer coisa – dentro e fora do universo do skate.
Pai, você precisa saber disso. Mesmo depois de tanto tempo, o skate sempre vai exigir muito de mim. São horas e horas de treino. Dias e semanas de dedicação tanto para me preparar para uma competição quanto para gravar uma Video Part. Você pode assistir no YouTube, pai. Esses vídeos têm o poder de fazer as coisas acontecerem. Aqui, nos Estados Unidos, o selo de atleta profissional só vem com a Video Part. É outra coisa que vou aprender na gringa. Com esses vídeos, pai, vou ter a chance de conhecer lugares diferentes.
Europa.
China.
Austrália.
Nova Zelândia.
Em um desses vídeos, só estávamos nós, garotas, fazendo as nossas manobras, com todo estilo. E imaginar que logo quando eu comecei, pai, até as mães dos outros garotos se incomodavam quando eu estava andando nas pistas. Você se lembra, né, pai? Diziam até mesmo que eu não podia competir com os filhos delas.
Ainda bem, graças a Deus, que hoje as coisas não são assim. Outro dia, eu até recebi mensagem de uma mulher de 36 anos. Ela disse que sempre gostou de skate, mas que nunca teve coragem de andar. Foi só depois que passou a ver meus vídeos que se animou. E agora ela também anda de skate.
E teve ainda a Rayssa Leal, a Fadinha. Ela disse que sempre foi minha fã e fez questão de me conhecer. Quando nós nos vimos, ela se emocionou. Veja só, pai, eu realizei o sonho de alguém porque eu ando de skate. Isso é muito gratificante.
E você precisa saber também, pai, que sua filha ainda vai ganhar uma menção no Guiness Book. A skatista com o maior número de vitórias da Copa do Mundo de Skate Street em 2017.
Agora, inacreditável mesmo vai ser quando você reparar que eu virei personagem de videogame. E logo do Tony Hawk. Eu fiquei espantada quando meus empresários me mostraram o e-mail com o convite. Você sabe, pai, é o meu jogo preferido da vida.
Muito, muito especial.
Eu devo confessar, pai, que, apesar de tudo o que já vivi do skate, eu estava bastante ansiosa com a chegada da Olimpíada – isso mesmo, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, vai ter skate, sim, senhor.
Por isso, eu não queria ficar de fora. Eu sempre gostei de Olimpíada. Então, num evento na China, eu fui além dos meus limites e quase coloquei tudo a perder.
Eu estava seguindo um ritmo muito forte para alcançar o ranking das Olimpíadas. Foi um período bem puxado. Primeiro, tive uma lesão no ligamento do tornozelo. Para não ficar sem competir, quando eu não estava em evento, só usava botinha. O meu pé melhorou e eu fui para o Mundial na China. Daí, três minutos antes da minha volta, aconteceu: machuquei o meu pé. Por um instante, pai, eu pensei em desistir. Estava com muita dor. Sei que você me diria pra parar. Eu entenderia. Só que, no último instante, eu decidi: “Vou competir”. A adrenalina anestesiou minha dor e eu ganhei o evento.
Só que, quando eu voltei para os Estados Unidos, veio a conta da vitória: competi com o pé quebrado e não sabia.
Fiquei 60 dias parada. Um mês com a botinha e um mês fazendo fisioterapia. Depois desse tempo, voltei, pai. Não, ainda não era o tempo certo. Mas era a última etapa do Mundial, eu sei que você vai entender. Pontos dobrados para as Olimpíadas.
Porém, quando fui treinar, outra decepção. Eu não estava mais sentindo dor, mas, já nos primeiros movimentos, quebrei o pé de novo.
Eu chorei, pai.
Dessa vez, achei que teria de desistir das Olimpíadas, do meu sonho. E tudo por causa de uma lesão tão besta.
Aquele foi o pior mês de novembro da minha vida.
Cheguei até a apagar o aplicativo do Instagram do meu celular. Eu não queria ver ninguém. Não queria falar com ninguém.
Só que o skate me ensinou a não desistir. Com o tempo, eu comecei a fazer fisioterapia novamente. E os resultados vieram antes do que eu esperava. Passei o mês de dezembro sem colocar o pé no skate, mas, em janeiro, eu já estava praticando de novo. Dei uma olhada na minha pontuação e vi que meus números para as Olimpíadas eram bons.
E, então, veio a pandemia do novo coronavírus e as Olimpíadas de 2020 foram adiadas.
Eu estava pronta para competir, pai, porque participar dos Jogos Olímpicos é um sonho para qualquer atleta. Queria muito ter ido no ano passado. Ao longo de 2020, usei meu tempo para colocar a cabeça no lugar. Pude me recuperar fisicamente, e acredito que, na medida do possível, todos os atletas puderam recarregar suas energias para chegar bem no Japão.
Eu ainda sonho, pai, e me vejo participando dos Jogos Olímpicos de Tóquio. De tudo que pude conquistar na minha carreira, ainda falta esse pódio. Confesso que é o que mais me deixa ansiosa neste momento.
Mas tem uma coisa, pai. Embora eu já imagine que vá frustrar suas expectativas de novo, prefiro que você saiba por mim. Mesmo depois das Olimpíadas, mesmo se eu conquistar uma medalha, eu não vou parar. Depois de tantos obstáculos, acho que ainda falta superar o do reconhecimento do skate feminino.
Ainda hoje, é natural que o skate masculino tenha muito mais apoio que o feminino.
O que não deixa de ser uma contradição. Este é um esporte que não discrimina ninguém. O skate não abandona ninguém.
Pouco importa, pai, se vão chamar sua filha mais nova de maloqueira, de Maria-Homem. E não tem problema se, de vez em quando, eu cair e me machucar. Eu sei que você quer cuidar de mim. Mas não tem jeito. Você vai ter de deixar eu fazer umas manobras mais ousadas, como aquela de quando eu tinha 9 anos: montar um skate novo no dia seguinte a você ter partido o meu anterior ao meio.
Acredite, pai, isso vai ser importante para mim e para todos os garotos e garotas, de todas as idades.
Se eu posso, eles também podem. Essa será minha grande conquista.