Podem Me Chamar de Rocha

Ricardo Moreira/Getty Images
Em parceria com
Federação Paulista de Futebol

Como dizia o poeta lá das minhas Minas Gerais, tinha uma pedra no meio do caminho. Só que em vez de chutar, eu pus ela nas costas. Porque não era uma brita, pedrinha dessas que a gente enche o bolso pra depois tacar na lagoa, ou que se perde no meio da poeira. 

Era uma rocha. 

Enorme, sólida, firme, feita do que eu sou: compromisso, perseverança, gratidão e respeito às minhas origens. 

Rocha é o meu nome, o nome da minha mãe, da minha família. Isso está longe de ser um peso ou um incômodo. Nada a ver. É, sim, o entendimento de uma história que eu faço questão de carregar. Você vai precisar compreender o tamanho disso se quiser me conhecer. Eu vou te contar.

Marcos Rocha Palmeiras Players Tribune
Cesar Greco/SEP

Eu nasci no bairro do Carmo, em Sete Lagoas, praticamente dentro do Campo Serrinha, onde meu pai sempre jogou e ainda joga futebol de várzea. Ele é um zagueiro duro, intenso, mas leal, brincalhão e solidário como sempre foi na vida e na carreira de policial militar. 

Na minha lembrança mais antiga de menino eu estou colado no alambrado do Serrinha, torcendo e gritando por meu pai. Lá de dentro ele acena pra mim, faz aquele gesto de “Força! Vamos pra cima!” e uma mistura de alegria e orgulho me enche o coração. O jogo vai começar. Então eu me afasto da grade e me vejo imundo de graxa. O calção, a camiseta, os braços, as pernas, a cara, até os cabelos engordurados, tudo preto, uma sujeira só. A graxa era uma sacanagem do dono do campo pros torcedores não se pendurarem no alambrado. A alegria e o orgulho viram apreensão. E agora? Será que vou ficar de castigo? 

No fim da partida, meu pai sai do campo, olha pra mim naquela imundície e me dá um abraço longo, apertado, dividindo a graxa comigo, todo sujo. E ali eu entendi que teria pra sempre do meu lado um cara pro que desse e viesse. Mais tarde isso viria a fazer a diferença nos momentos mais difíceis da minha carreira. Essa noção de carinho, apoio, compreensão. E eu procurei retribuir honrando o nome da família, não fazendo nada que obrigasse a gente lá de casa a andar de cabeça baixa.

Eu chorava de raiva quando perdia. Continuo assim. Quero ganhar tudo.

Marcos Rocha

Meu pai nunca levantou a voz comigo. Nunca impôs nada, nunca me disse “faz assim, faz assado”. Ele sempre me deixou escolher que pedras chutar e que pedras carregar. “O que você gostaria de fazer a respeito disso?”, é a pergunta recorrente dele. Eu conto isso porque você deve achar estranho um policial militar agir assim. 

Pois seu Silas nunca foi um homem autoritário, de palavras duras. Ele preferia ser exemplo. Agora está aposentado, mas sempre teve muito apreço pelo trabalho: ser policial, pra ele, era questão de boa conduta, não de dar ordens. Eu admirava tanto meu pai que o meu maior medo na adolescência era fazer algo errado que comprometesse a imagem dele como militar. Por isso, eu não matava aula, não me metia com droga, com bebida, briga. Eu queria ser um trabalhador exemplar como ele. 

Depois eu viria a conhecer jogadores muito mais talentosos do que eu, mas que sem essa base familiar, esse apoio em casa, tropeçaram nas pedras e tombaram pelo caminho. Enfim, o que eu estou tentando dizer é que não são as botinadas da vida que fortalecem a gente. O que faz isso é saber que você tem pra onde correr quando o bicho pega, quando as coisas ficam realmente ruins. E eu sempre tive a nossa fortaleza feita de Rochas fortes e antigas como abrigo.

Marcos Rocha The Players Tribune Palmeiras
Pedro Bodick/The Players Tribune

Quando eu tinha seis anos, fui jogar futsal. Antes jogava na rua, num terreno que eu e meus amigos capinávamos e onde cortávamos bambu pra fazer os gols. Só que no futsal eu não tinha força pra chutar a bola. Eu era franzininho e a bola, muito pesada. Ela não me obedecia, não ia aonde eu queria que ela fosse. Meio triste, um dia eu desabafei: “Pai, não tá legal. Não consigo jogar”. 

Acho que naquela idade qualquer criança ia procurar outra brincadeira e tudo bem. Mas eu amava futebol. E tinha um pai que, embora fosse Aquino de sobrenome, conhecia bem os Rocha da casa: não era uma bola pesada que ia me jogar pra escanteio. “Tudo bem, filho. Quer tentar o futebol de campo?”, ele me perguntou. Eu quis. Anos depois, quando ganhei uma bolsa de estudos num colégio particular e não conseguia conciliar as aulas com os treinos, meu pai de novo perguntou: 

— O que você quer fazer?

— Eu quero jogar futebol.

— Então vamos dar um jeito nisso.

Voltei pra escola pública, estudando de noite pra ter mais tempo para treinar. Pra mim isso foi mais valioso que qualquer pedra preciosa. No futebol de campo, eu comecei a me destacar jogando de meia. Fazia gol até, era artilheiro e fiquei mal acostumado: aprendi a odiar a derrota. 

Meu apelido era Chorão hahaha, porque eu chorava de raiva quando perdia. Continuo assim. Coletivo, Paulistão, Libertadores, não interessa. Eu quero ganhar tudo. Com 14 anos eu fui pro time mais tradicional da minha cidade, o Democrata, e logo pintou um convite pra fazer um teste aqui em São Paulo. Fiz o teste, passei e pela primeira vez saí da nossa fortaleza. 

Foi um baque, né? Porque a dona da fortaleza era minha mãe. E mãe mineira você sabe como é: não quer filho nenhum longe das asas dela. Dona Valdecir não conseguiu lidar bem com a distância, parou de comer e adoeceu. 

Então, como estava preocupado com a situação dela, conversei com meu pai e concluímos que era melhor eu retornar. Foi difícil. Não porque eu estava adiando meu sonho, quem sabe até abandonando ele. Isso eu nem considerei quando me senti sozinho dentro do ônibus Cometa, certo de que o caminho de volta teria não uma pedra, mas uma pedreira inteira pra enfrentar. Família primeiro, futebol depois, eu estava seguro disso. O duro foi aguentar a humilhação por parte dos outros jogadores no Democrata. 

“Aí, hein, molenga. Não deu certo lá em São Paulo. Não aguentou e teve que voltar.” 

Eu engoli em seco e respondi do jeito que eu tinha aprendido em casa: sem baixar a cabeça. Poucos meses depois, com apenas 15 anos, eu estava no profissional do Democrata. E aos 16 assinei meu primeiro contrato com o Atlético-MG.

Esse episódio me ajudou a entender do que eu era feito. Mas só três anos depois, quando fui emprestado pro CRB, de Alagoas. Cheguei como titular. Primeiro jogo, primeiro passe pra mim, vou dominar, bola na canela. Segundo jogo, bola na canela de novo. Terceiro jogo, bola na canela. No quarto jogo a torcida já queria me matar. Meu pai me mandava mensagem perguntando como estavam as coisas e eu respondia:

— Nada bem, pai. Não sei o que tá acontecendo. A bola só bate na minha canela.

— Fica calmo e continua trabalhando. Sua mãe tá bem. Logo as coisas se ajeitam aí.

Ele entendeu tudo. Sempre entendia. Mas dessa vez a preocupação com minha mãe era diferente. Tinha menos a ver com a saudade que ela podia estar sentindo de mim, e mais com a situação complicada que eu vivia em Maceió e não queria que ela soubesse. Eu ganhava R$ 1.300 por mês e morava num apartamento alugado pelo CRB. À certa altura, o salário começou a atrasar e eu passei a ter que escolher que refeição faria: o almoço ou a janta. Geralmente eu escolhia jantar, porque dormir com fome é pior. 

Não demorou, a proprietária do imóvel começou a bater todos os dias na minha porta. Queria receber o aluguel, que o clube deixou de pagar, e dizia que ia me despejar. Eu vivia aflito, mas não queria contar pro meu pai. Se contasse, chegaria aos ouvidos da minha mãe e era capaz de ela ir lá em Maceió me resgatar, ou adoecer outra vez. 

Além do mais, como eu disse, eu precisava saber de que rocha eu era feito. Eu era um cascalho que qualquer peteleco manda pra longe? Era uma pedra-sabão que esfarela na primeira martelada? Ou era um rochedo que nem chuva, furacão e terremoto derrubam?

Jamais vou baixar a cabeça. Sabe por quê? Porque toda vez que sou campeão eu lembro do dia que escolhi carregar Rocha nas costas.

Marcos Rocha

Muita gente na minha cidade apostou que eu voltaria derrotado de novo, como tinha voltado de São Paulo. Que eu não era duro o suficiente pra suportar as pancadas do futebol. Mas aguentei firme, inteiro. E saí da tempestade mais forte do que entrei.

Ainda rolariam umas idas e vindas, uns altos e baixos com passagens por Ponte Preta e América Mineiro, antes que eu finalmente me sentisse um Rocha, um rochedo de verdade. 

Isso aconteceu numa tarde de 2012. Eu tinha 24 anos e estava de volta ao Atlético. Começou um zum-zum-zum de que o Ronaldinho Gaúcho vinha jogar no Galo. Cê tá doido?!! Não pode ser!, pensei. Peguei o carro e dirigi até o CT. Quando cheguei, só olhei pros porteiros, um pessoal gente boa demais com quem sempre tive afinidade e até hoje conversamos por grupo de WhatsApp. Nem precisei perguntar nada. Um deles já falou assim: “Tá no hotel”. 

Não é possível! 

Mas era verdade. Só acreditei quando desci as escadas pro campo e vi o cara vindo na minha direção com o uniforme de treino do Galo. “Caraca, vou jogar com o Ronaldinho!!!”. Um dos maiores da história, o gênio que eu assistia e admirava na televisão. 

Não só jogamos pelo clube e pela Seleção, como conquistamos juntos aquela Libertadores maravilhosa. Eu nunca tinha ousado sonhar com uma coisa dessas. Só que estava acontecendo. E eu encarei como se fosse uma recompensa que a vida me deu por eu ter sido, como meu pai, um cara leal, correto, que só queria andar de cabeça erguida pela estrada de pedras.    

E desde então eu não me deixo abalar por quase nada. Vem a chuva, vem o furacão, vem o terremoto e eu sigo caminhando.

Marcos Rocha Palmeiras Paulistao
Mauro Horita/Ag. Paulistão

Logo depois que eu soube que o Atlético não contaria mais comigo para a temporada de 2018, meu telefone tocou, e era do Palmeiras. Mais especificamente, o Alexandre Mattos, que eu conhecia desde os tempos de América. 

— E aí, não quer vir jogar no Palmeiras?, ele disse.

— Uai, que dia eu me apresento?, respondi.

— Fica tranquilo que agora eu resolvo.

Não foi fácil conquistar meu espaço aqui. Mas, no fim das contas, entre derrotas e vitórias, lágrimas de felicidade e de tristeza, e com tudo que o Abel trouxe desde que chegou, essa filosofia dele de fazer sempre o melhor, essa mágica de tirar da gente nada menos que a entrega total, eu percebi: Pô, me tornei uma pessoa melhor no Palmeiras. Eu precisava desse rio que arrasta tudo que encontra pela frente, mas também alisa, arredonda as pedras do leito e molda os paredões das margens. No Palmeiras eu fiquei mais tranquilo comigo mesmo, mais seguro, realizado e feliz. 

Aqui eu conheci a minha nova fortaleza. Me sinto muito valorizado por tudo que conquistei. Me sinto tão à vontade que não existe nada que eu goste mais hoje em dia do que dar alegria à torcida palmeirense e continuar escrevendo meu nome na história do clube. 

Marcos Rocha nome mae Palmeiras
Cesar Greco/SEP

Em todo torneio, nosso primeiro objetivo é classificar, e depois fazer a melhor campanha, porque sabemos da nossa força decidindo em casa, com o Allianz cheio, como estará mais uma vez nesta final. Eu quero ser campeão paulista de novo. Quero catar esse tijolo que o adversário colocou no nosso caminho no domingo passado e jogar bem longe. 

Não vou chorar de raiva por ter perdido, muito menos baixar a cabeça. Não vou. Sabe por quê? Porque toda vez que eu sou campeão eu lembro do dia que escolhi carregar Rocha nas costas. 

Foi pra isso. 

Pra vencer e poder exaltar o nome da minha família, da minha mãe em particular e do pai dela, meu avô. 

Metade do que eu sou eu devo ao meu pai, como contei. Mas minha mãe e meu avô tiveram uma vida muito, muito dura. Aos 11 anos, a dona Valdecir já não tinha um dente na boca. Meu avô, que não conheceu nenhum dos netos, era um atleticano fanático e morreu sem nunca ter conseguido comprar uma camisa do Galo. Então, muitos anos atrás, quando me perguntaram no Atlético que nome eu ia usar como jogador, se Marcos, Marquinhos, Marcos Luis, Marcos Aquino…, eu falei: “Eu quero ser Marcos Rocha”. 

Era pra isso. 

Pra um dia sair de um jogo de título, entregar minha camisa pra minha mãe e, num abraço silencioso, dizer pra ela: “Nós somos Rocha, mãe. Não fomos feitos pra ser os melhores. Fomos feitos pra resistir”.

Autografo Marcos Rocha

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