Vida de Surfista

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O que é ser um surfista?

Acho que hoje, finalmente, tenho condições de responder a essa pergunta.

O surfe é um esporte que está no meu sangue, se assim posso dizer.

Desde criança, minha família está envolvida com a modalidade, e isso numa época em que ser surfista até poderia ser cool, mas nem de longe era uma perspectiva de futuro... Muito menos profissão. Aos 21 anos de idade, meu pai, Wagner Pupo, já estava trilhando seu caminho como surfista.

No meu caso, não tinha mesmo como ser diferente, né? Foi em casa que tive o maior exemplo e um apoio inestimável da minha família.

Só podia dar bom, certo?

Mas naquela época, quando comecei a pegar onda, eu não tinha a menor certeza de que me destacaria. 

Sim, eu sei, pode parecer que, pelo meu pai, tenha sido fácil para mim, mas a verdade é que tive de tomar muito caldo antes de chegar e permanecer por tanto tempo entre os melhores do mundo.



Para mim, o surfe sempre foi um lance ligado às minhas amizades, uma parada de parceria. Papo reto: naquela época, eu não levava o surfe assim tão a sério.

Era uma experiência no mínimo contraditória, pra falar a verdade. Com meu pai, rolava mais aqueles conselhos (às vezes, gritos, né, pai? hahaha) para pegar esta ou aquela onda. Tinha uma pegada bastante competitiva. Aos poucos, fui me acostumando e gostando daquilo. 

Só que, ao mesmo tempo, eu não conseguia ganhar nenhum dos torneios que participava.

Quando a gente começa a pegar onda do jeito que aconteceu comigo, esse espírito aflora, não tem como. Você quer ganhar, e com o exemplo que vinha de casa, era natural que eu quisesse me provar naquele início.

Já com os meus amigos era diferente. Lembro que vivi a melhor infância que um moleque poderia querer.

Miguel Pupo surfe WSL
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Sem fazer muito esforço, sou capaz de recordar as conversas que a gente tinha, as longas caminhadas até a praia… Não, eu mal tinha dinheiro para tomar café direito (a gente comia bolacha Bono na ida e na volta), mas, sem falsa modéstia, eu era o que melhor surfava ali.

E quando minha mãe abriu uma escolinha de surfe? Vish, até eu virei instrutor, porque algumas crianças só aceitavam pegar onda comigo. Ah, não preciso nem dizer que gastei todo o dinheiro ganhava em hot dog.

Esse período, hoje vejo, foi decisivo pra mim. Foram os meus primeiros anos de formação como surfista. Dou valor a isso hoje de um jeito que não dava na época, até porque não tinha como saber que estava plantando algo tão especial ali.

O que eu comecei a cultivar naquela fase foi essencial para o surfista que iria me tornar no futuro.

De pouquinho em pouquinho, fui aprendendo que a vontade de vencer me fazia querer disputar e ganhar do melhor surfista (que, naquela época, era o Pedro, que não perdia para ninguém).

Se meu pai não teve a mesma sorte quando era jovem, ele dedicou todo esforço para que seus filhos pudessem viver do surfe.

Miguel Pupo

Mas o que eu podia fazer? Eu ainda era somente “o filho do Wagner Pupo” — na melhor das hipóteses, o Janela (por causa do meu dente de leite perdido) ou o Valinha (porque meu pai era o Vala).

Hoje penso que isso poderia ter me feito desistir... Afinal, eu não era um vencedor naquele momento, e ter esse esporte no sangue, qualquer esporte, é um peso e tanto, capaz de destruir a convicção de que eu tinha algum talento para o surfe...

Além disso, eu não estava tanto com meu pai, que vivia viajando para surfar naquela época...

Mas a verdade é que isso me fortaleceu.

Aprendi que tinha de trabalhar para chegar aonde eu queria chegar. E como nunca era cotado como favorito para nenhuma disputa, eu tive de ralar para merecer destaque, mesmo sendo filho do Vala.



Como passei muito tempo sendo derrotado em competições (quando a gente é criança, quatro anos é uma eternidade), me lembro como se fosse hoje da minha primeira “vitória”. 

Cara, naquele dia, o mar tava grandão. Sim, eu morri de medo quando vi. Chorei, chorei mesmo. 

Eu tinha oito anos, era minha primeira competição. O que me motivou naquele dia foi a minha vontade de ganhar, que era maior que o medo da onda grande. Bom, eu não ganhei, acabei ficando em sexto lugar, mas a minha vitória foi ter vencido o medo.

Minha primeira vitória, de fato, só aconteceu muito tempo depois. Aos 12 anos, ganhei meu primeiro evento municipal. Mais ou menos nessa época, consegui um contrato de patrocínio e entrei para o projeto Futuros Campeões. Foi aí que a chave virou. Até mesmo meu pai percebeu isso. Os dias de luta pareciam ter ficado para trás.

Nas férias de julho, eu não tinha a rotina da escolinha de surfe, mas isso não me impedia de ficar o dia todo na praia. Meu rolê nessa época era com outros amigos, e um deles, o Max Motta, tinha uma casa ali em Camburi, bem na rua da praia, o que facilitava bastante para treinar e desenvolver o meu talento.

Então, posso dizer que a minha vida como atleta profissional começou pra valer ali.

Um dia, você é a criança que vai pra praia, pega onda e volta comendo bolacha e bebendo água de garrafa. De repente, você se torna o adolescente que recusa convites para ir às festas porque tem compromisso, assumindo que aquilo é uma coisa muito séria. 

Desde muito cedo, entendo que ser atleta profissional exige sacrifícios que nem todo mundo está disposto a fazer.

E não é porque meu pai foi surfista que comigo ia ser diferente. 

Eu tinha de construir minha própria história — e isso significava dedicação, comprometimento e, acima de tudo, a capacidade de dizer não.

É claro que eu sentia falta da época em que a minha única preocupação era arrumar uma grana para comer hot dog. E eu também sentia falta de compartilhar as alegrias e as frustrações com meus amigos. 

Mas há tempo para todas as coisas. E eu sabia o que eu queria ser. 



Meus avós não viam o surfe como um bom caminho para o meu pai. Não mesmo, afinal, eram outros tempos... Se ele surfasse, ele apanhava. Se ele comprasse uma prancha, meus avós iam lá e queimavam. 

Tanto é que, naquela época, ele ganhou o apelido de Chulé, porque quando encontrava os amigos e pedia prancha emprestada, a galera já mandava o papo reto: 

“Sai do meu pé, chulé!”

Meu pai teve de insistir muito para se tornar um surfista. E foi recompensado por isso. O menino desconhecido com uma prancha emprestada desbancou o rei do Brasil na época, que era o Picuruta, e virou uma lenda do circuito nacional.

Outra recompensa que o surfe trouxe pra ele foi a minha mãe. Eles se conheceram durante um campeonato quando ainda eram adolescentes e não se desgrudaram mais. Me tiveram cedo, assim eu pude acompanhar boa parte da carreira do meu pai.

Sempre foi um privilégio aprender com o exemplo dele dentro de casa. Se meu pai não teve a mesma sorte quando era jovem, ele dedicou todo esforço para que seus filhos pudessem viver do surfe. E desde que me entendo por gente, a prancha nunca saiu do meu pé.

Miguel Pupo WSL surfista
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Mas havia momentos em que, olha... confesso que era bem difícil. Pode parecer exagero que um atleta de elite do surfe internacional já pensou em desistir... é o que dizem, né, quenós somos fortes e inabaláveis, feitos de aço, que não sentimos nada…” 

Acontece que comigo não foi assim. Teve uma hora em que pensei que aquilo tudo, competições, viagens, rotina de recusa à vida social e entrega total ao esporte... tudo isso me pareceu demais...

O que me fez desistir de desistir?

Minha família, que sempre esteve lá para me ajudar a segurar a barra pesada.

E esse apoio veio justamente no momento em que as vitórias não estavam acontecendo, logo depois que passei a disputar torneios oficiais.

Para um atleta, ter confiança no que faz é fundamental. 

Isso vem com treinamento, que te capacita física e tecnicamente para o trabalho, mas também tem a ver com o aspecto emocional, que, querendo ou não, está ligado aos resultados.

Alguém pode dizer, numa hora dessas, “paciência, Miguel, o que é seu tá guardado, a vitória logo vem”. 

Como surfista, aprendi que falar coisas assim é muito fácil (principalmente quando você está de fora). 

O difícil mesmo é conviver com essa expectativa. 

E olha que eu mal sabia a montanha-russa que estava por vir…



O ano de 2022 foi maravilhoso para minha carreira. 

Tem horas que o atleta simplesmente sabe que vai ganhar a competição. 

No meu caso, eu senti isso.

O mar tem vida, né? Às vezes, ele te escolhe, os sinais estão ali e você só tem de fazer o seu, ficar na posição e se posicionar da melhor forma possível. O engraçado é que eu não era assim. Eu até “brigava” com meu pai por isso. Ele vinha sempre todo empolgado: “vamos ganhar”. Eu respondia: “fica quieto, um dia de cada vez”.

Então, quando cheguei na final, a oportunidade de fazer história apareceu. Ser campeão em Tehaupoo. Chegar num lugar que poucos atletas alcançaram. Outro patamar. 

Era algo que faltava na minha prateleira mental.

Você sabe o que é apenas 18 surfistas brasileiros terem vencido um desafio assim? Num esporte tão conhecido, que tem tanta gente praticando, este feito é um reconhecimento que eu esperava.

É muito gratificante.

Ser surfista é viver no limite, querendo aproveitar ao máximo, buscando sempre a próxima onda e um lugar ao sol. 

Miguel Pupo

O que eu não esperava era, depois de ter chegado no top 6, me lesionar do jeito que me lesionei. 

Eu já estava fazendo planos, contando com uma boa campanha no circuito deste ano, que me daria condições de disputar as Olimpíadas. Seria especial. Já estava tudo pronto na minha cabeça.

Daí veio essa lesão, muito mais séria do que eu imaginava, mais grave do que eu gostaria de admitir. E, de início, eu mesmo neguei que fosse tão forte, então, eu acabei me comportando como se a recuperação dependesse única e exclusivamente da minha força de vontade. 

Mas as coisas nem sempre acontecem como a gente gostaria que fosse. 

Durante muito tempo, não consegui tirar do meu peito a dor que eu estava sentindo. Quando pensava nisso, só vinha a vontade de chorar. E eu perguntava: “Por que, Deus, eu tenho que passar por tudo isso, justo agora?”. Para mim, não tinha explicação, e eu queria uma resposta.

Não foi fácil.

Hoje, não. Eu já aceitei. E estou focado para que minha volta aconteça do jeito que tem de ser. 

E, pra falar a real, tenho de dizer que estou desfrutando de outra versão de mim mesmo, a de pai. 

#Paidemeninas. 

Ter me tornado pai foi um dos presentes que a vida me deu, mas, sendo bastante honesto, eu ainda não tinha vivido essa experiência como agora.

Luna, de seis anos, Serena, quatro anos, e Flora, seis meses, agora convivem com um pai que está muito mais presente. E eu sinto que este é um tempo eu precisava aproveitar agora.

Como é a vida, não?

Não existe troféu, campeonato ou onda que vai me dar o prazer de estar aqui, ao lado das minhas meninas, desfrutando desse momento mágico...

Ensinando a Luna a andar de bicicleta sem rodinhas...

Mostrando pra Serena como faz para desenhar...

Brincando junto com a Flora, ainda nos meus braços...

E então eu descubro que só agora entendo o que meu pai queria dizer quando me falava as coisas do jeito dele.

Quando a gente sabe ouvir, não precisam muitas palavras. Durante muito tempo eu errei porque, de verdade, não fazia ideia da responsabilidade que é ser pai. E hoje, sabendo disso, eu também tenho a verdadeira noção do que é ser surfista.

Milguel Pupo surfista filhas
Cortesia de Miguel Pupo

Ser surfista é viver no limite, querendo aproveitar ao máximo, buscando sempre a próxima onda e um lugar ao sol. 

Ser surfista é aprender a conquistar seu espaço, mesmo quando as condições são desfavoráveis e o mar fica grande. 

Ser surfista é entender que existe sempre uma família que vai te apoiar incondicionalmente, na vitória e na derrota. 

Ainda não sei o que está reservado para mim. Vivo o hoje intensamente. Neste momento, é ficar junto da minha família e das minhas filhas.

E assim que eu tiver a chance de colocar a prancha debaixo dos meus pés novamente em uma competição, podem esperar, vou mostrar que ainda tenho fogo no coração e que posso me reinventar mais uma vez.

Ser surfista, no fim das contas, é não perder a essência que me trouxe até aqui.

autografo Miguel Pupo

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