A Verdadeira História do Pantera Negra
Numa noite de 2018, uma ida ao cinema mudou tudo. Eu sempre gostei do universo dos super-heróis, histórias do bem contra o mal, poderes especiais, magia, ação, tudo isso. Mas Pantera Negra era diferente. Me deixou maravilhado e perplexo.
Depois que a luz acendeu, eu devo ter ficado mais uns dez minutos sentado na poltrona.
Ou foram vinte?
Meia-hora?
Não conseguia levantar.
Meu Deus, o que foi isso?! Tanta coisa pra pensar que eu nunca pensei antes… O que eu faço agora? Eu estava em choque. Voltei a mim com a Fernanda, minha esposa, me chacoalhando:
— Patrick, querem fechar o cinema. Precisamos sair.
O filme era uma pancada. Me sacudiu a cabeça de um jeito que eu ainda não conseguia entender, mas sentia que o baque era forte e pra sempre. Vou resumir rapidinho o enredo pra quem ainda não assistiu.
Se passa nos dias atuais. T’Challa, o Pantera Negra, é rei de Wakanda, um território africano escondido e tecnologicamente desenvolvido por ser rico num metal poderoso chamado vibranium. A missão de T’Challa é proteger o reino e o modo de vida dos wakandanos — proteger do mundo branco exterior.
Até que o vilão Killmonger, que pra mim também é um herói, mas eu falo disso depois, aparece querendo tomar o trono e usar o vibranium para fazer uma rebelião negra internacional contra a opressão, contra o racismo. Apesar dos métodos de Killmonger, a causa desperta conflitos internos em T’Challa, que não tava muito ligado na diáspora africana e nos reflexos da escravidão, que matam o povo preto até hoje mundo afora. A parada dele era proteger Wakanda, não deixar que ninguém soubesse dela e das proezas do vibranium, senão não ia sobrar nada. Tem um diálogo entre os dois que eu mais ou menos decorei:
— Eu quero o trono!, diz Killmonger. Vocês estão aqui confortáveis, parece legal. Mas tem dois bilhões de pessoas que se parecem com a gente e a vida delas é bem mais difícil. Wakanda tem um jeito de libertar o nosso povo.
— Povo que não é o nosso, responde T’Challa.
— Mas a vida não começou aqui [na África]? Então não são todos os povos o nosso povo?, questiona Killmonger.
Não são todos os povos o nosso povo?
Não são todos os povos o nosso povo?
Não são todos os povos o nosso povo?
Essa pergunta me martelava as ideias.
Saindo do cinema, eu tinha muita coisa nova dentro de mim, eu precisava fazer algo com tudo aquilo. Entrei numa loja de brinquedos e comprei uma máscara do Pantera Negra. Puro impulso. Senti vontade de extravasar e combinei comigo mesmo de vestir a máscara na comemoração do próximo gol que eu fizesse.
Não tinha noção no que ia dar. Eu jogava no Inter, era um dos artilheiros e o líder em assistências do time. Tava voando, modéstia à parte. Num jogo contra o Vasco no Beira-Rio, não deu outra. Marquei um gol, botei a máscara e corri com os braços fazendo o X que nem o pessoal de Wakanda. Caraca, a torcida delirou! Mas o juiz me deu cartão amarelo, que me suspendeu da partida seguinte e por isso cheguei até a me arrepender.
Logo em seguida o Campeonato Brasileiro deu uma parada por causa da Copa América e, sem jogo, sem muita notícia, o treco da máscara ficou repercutindo. Eu saía na rua e os torcedores colorados: “Olha o Pantera Negra lá, filho! Aí, Pantera Negra! Valeu, Pantera Negra! Wakanda para sempre!”. Vinha muita criança negra falar comigo, pedir pra tirar foto, dizer que curtia o Pantera Negra.
“Tio, você é o Pantera Negra?”
Então, eu comecei a ter respostas para aquelas sensações que me pegaram no cinema.
O meu gesto no jogo contra o Vasco funcionou como uma mensagem pra um monte de gente. Era como se aqueles meninos e meninas esperassem algo de mim, esperassem um super-herói do futebol que representasse eles.
Pensei comigo: Bom, agora eu não saio do personagem nunca mais. Preciso levar essa força adiante, mostrar os feitos grandiosos e a beleza do povo preto. Preciso falar das injustiças, do preconceito, da crueldade toda. Preciso fazer alguma coisa por uma vida mais justa, fraterna, menos desigual.
Foi aí que eu mergulhei na causa antirracista. E, cada vez mais fissurado no filme, vira e mexe eu identifico coisas da minha saga que se parecem com a história de T’Challa, Killmonger e Wakanda.
Quer saber a verdadeira história do Pantera Negra? O Pantera Negra por trás da máscara? O Pantera Negra da vida real?
Sente só.
A minha Wakanda é Olaria, no Rio de Janeiro. Nasci e fui criado no bairro, num conjunto habitacional que tinha um campo de futebol bem na frente do meu predinho. Como nunca fui bom de pipa, pião, bicicleta e era só meia-boca em bolinha de gude, mas jogava futebol sem medo dos mais velhos e dos mais fortes, aquele campinho ficou sendo o meu palácio.
De certa forma ainda é…
Ali eu fiz os meus melhores amigos, dali eu sinto as maiores saudades e ali eu volto nas férias pra bater uma bola (o Bruno Henrique, grande parceiro dos tempos de Goiás, já foi lá comigo), assar uma carne e rever a galera. Sempre foi um lugar impossível de desapegar.
Quando eu jogava no sub-18 do Operário de Ponta Grossa, no Paraná, assim que acabava o nosso jogo no sábado, eu corria pra rodoviária. Tomava um ônibus pra Curitiba e lá outro pro Rio. Baixava em Olaria domingo de manhã e voltava no mesmo dia, à noite, pra treinar na segunda de manhã.
Que doideira!!
Hoje eu lembro disso e me pergunto por que fazia essa loucura. Será que era pra estar com os meus e assim me reabastecer de erva-coração, no filme a flor mágica que restaura a força do Pantera Negra?
Devia ser. Eu bem que precisava.
Era uma fase de morar embaixo da arquibancada do estádio e não poder pegar dois bifes no almoço — era só um por jogador. Mas eu nunca pensei em desistir. Estar jogando era maravilhoso, então os apertos eu contornava do meu jeito: voltando toda semana pra Wakanda.
Ah, Olaria, eu nunca vou te abandonar… Pra mim, é o pôr-do-sol mais bonito que existe. Porque ali também que eu conheci o sol em pessoa: Fernanda, a minha heroína Nakia, minha agente-secreta, companheira de caminhada que me chacoalha e não me deixa tropeçar demais nessa vida.
Ainda moleque, meu sonho era morar no campinho. Mas voltava pra casa chorando assim que meu pai botava a cara na janela e gritava pra eu subir:
— TÁ NA HORA, PATRICK!
Não rolava “peraí, já tô indo, só mais um minuto”. Eu entrava rapidinho.
É que à noite perigos rondavam Wakanda e o meu pai não queria me perder como outros pais perderam seus garotos. O pessoal até dizia: “O Patrick pode cair do muro, tomar botinada, carrinho, bater a cabeça, quebrar a perna, ser atropelado que não chora. Mas é só o pai dele mandar parar de jogar bola e entrar que ele abre o berreiro”. Era bem isso. Eu ficava triste, mas entendia o meu pai.
Respeito total por ele, já falecido, sabedoria eternamente presente, como o pai do T’Challa. Tem uma cena no filme em que o antigo rei, no além, diz assim pro príncipe inseguro diante dos desafios da vida: “Um homem que não preparou seus filhos para a sua ausência falhou como pai”. É isso… Louvados sejam os nossos ancestrais!
Bom, aí do campinho em Olaria eu comecei a frequentar escolinhas de futsal, onde eu acho que desenvolvi meus superpoderes: o drible curto, velocidade e a força física pra roubar a bola do adversário. Meu vibranium, vamos dizer assim, vem do futsal.
Esses dias eu tava vendo umas estatísticas dos últimos cinco Campeonatos Brasileiros e eu estou sempre bem colocado nos dribles certos e nos desarmes. É a memória do futsal que o corpo da gente guarda, absorve como o traje do Pantera Negra e devolve no momento certo. Assim eu fui indo, na base da força e do drible.
Em 2014, eu estava com 22 anos e ainda não tinha, digamos, explodido no futebol. Só passagens por times pequenos. Aí pintou uma proposta do Gaziantepspor, da Turquia, e eu fui pra lá. Fiquei seis meses. Os caras acharam que eu não tava preparado pro futebol europeu e não me botaram pra jogar. Nem pude mostrar os superpoderes do vibranium e da erva-coração.
Voltei pra Wakanda e segui pro Caxias, no Rio Grande do Sul. Meu empresário achou loucura, mas eu disse pra ele: “Meu negócio não é dinheiro, é jogar futebol. E, se possível, mais perto de casa”. Fiz um bom Campeonato Gaúcho e depois o Caxias ia jogar a Série D do Brasileiro.
Um dia eu estava em casa, fazendo um balanço da caminhada até aquele momento, me perguntando se tinha acertado em voltar da Turquia, se meu destino era aquele mesmo, ou se havia algo maior pra mim… E o telefone toca.
Era o professor Hélio dos Anjos, meu treinador na reta final no Caxias. Ele estava indo comandar o Goiás na Série A e me queria no time. Um dos poucos técnicos negros do Brasil, o Hélio foi tipo um Zuri pra mim.
No filme, Zuri é o guru, o sábio que guia os passos do Pantera Negra. Talvez o Hélio não saiba disso, mas o chamado dele mudou a minha vida.
No Goiás eu comecei a me destacar como driblador e ladrão de bola. Pela primeira vez como jogador profissional eu me senti à vontade pra mostrar meus superpoderes e tive a certeza que concretizaria o sonho de menino, conquistaria o mundo jogando bola e ajudaria a minha família. No Goiás também tinha muita gente boa. Bruno Henrique, Erik, Diogo Barbosa… Caras talentosos que começaram a despontar naquela passagem.
Foi uma temporada inesquecível, apesar do rebaixamento do Goiás pra Série B. Ali eu cresci realmente como jogador. Vesti o traje mágico do Pantera Negra que me abriria as portas dos clubes gigantes que eu defendi e onde vivi os melhores momentos da minha carreira: Sport, Internacional, São Paulo e, hoje, o Galo.
Sou grato a todos eles e aos torcedores, mesmo àqueles que me atacaram por não entenderem que não dá pra ser herói o tempo todo no futebol. Na vida real, e futebol é vida, a gente erra, faz parte. E aí vira vilão. Onde mais uma pessoa pode ser T’Challa na quarta-feira e Killmonger no domingo? Não devia ser assim, mas é.
Eu amo o futebol e tudo o que ele me deu, principalmente a consciência sobre quatro coisas fundamentais que carrego dentro de mim: quem eu sou, de onde eu vim, quem veio antes de mim e qual o meu dever como homem negro num mundo racista.
Acho que foi isso que me pegou tão forte aquele dia no cinema. E embora me identifique mais com T’Challa, eu entendo o sentimento do Killmonger, a raiva dele, o coração cheio de ódio e revolta, a busca por reparação. Ele não quer ser curado. Mais que um vilão, é um herói que prefere ser jogado no oceano, “junto com os ancestrais que pulavam dos navios, já que a escravidão era pior que a morte”.
Como eu sempre digo, não é só futebol, não é só um filme.
O que fizeram (e ainda fazem) com o nosso povo foi cruel, desumano e não pode ser apagado. A memória nos fortalece no presente e traça uma direção para o futuro. E, agora entendo isso, eu não vesti a máscara do Pantera Negra por acaso depois daquele gol contra o Vasco no Beira-Rio. Como o rei T’Challa, eu quero lutar por igualdade e justiça. O racista está fechado para o mundo. Confesso que às vezes sinto “pena” dessas pessoas que têm preconceito de raça, cor, gênero ou religião, porque são incapazes de conhecer e aceitar outros seres humanos como eles são, de aproveitar o quão maravilhoso é viver uma vida sem restrições às diferenças, a grandiosidade e a beleza do pôr-do-sol em Olaria, no Leblon, em Del Castilho ou em qualquer outro lugar.
O sol nasce e se põe pra todo mundo. E todo mundo tem ancestral africano, porque a espécie humana surgiu na África. “Existem mais coisas nos conectando do que separando”, é o que diz o Pantera Negra. “A gente tem que encontrar um jeito de cuidar uns dos outros como se fôssemos uma única tribo.”
Isso faz parte da minha história, esta é a minha história.
Este é o verdadeiro Pantera Negra.
Nem herói nem vilão. Só mais um batalhador que nunca vai deixar de sonhar, muito menos de lutar contra o racismo.
Wakanda para sempre!