O Melhor e o Pior de Mim
A luta, para mim, foi uma opção, não uma chance de ascensão financeira ou social. Diferentemente de muitas pessoas neste meio, que têm no esporte a única oportunidade, venho de uma família que tinha condições.
No meu caso, o esporte era a opção menos segura.
Meu pai é engenheiro; minha mãe, professora. A gente morava no Leblon, na zona sul carioca. Frequentei boas escolas e passei em 12º lugar no vestibular para medicina em uma universidade federal no Rio de Janeiro. Mas deixei tudo para ser lutador. Deixei tudo pela paixão pela luta.
Foi um tiro no escuro. Muitas vezes fui chamado de maluco.
“Pô, o cara tem tudo e vai ser lutador?”
“Tá louco, vai largar a faculdade?”
“Tomar porrada pra quê? Você não precisa disso…”
Meu pai mesmo me disse quando fui trancar o curso: “Meu filho, seja o melhor. Caso contrário, você vai passar fome”.
Tive a sorte de ter meus pais como grandes exemplos, mas também de meu caminho ter se cruzado, lá no começo da minha trajetória, com o de um sujeito como Marco Ruas. Quando ouço a palavra luta, aliás, é a imagem dele que me vem à cabeça.
A luta me moveu, me transformou, me fez ser quem sou hoje… Me formou como homem.
O esporte, para mim, é a maior ferramenta de inclusão social que existe no mundo. Nele, sim, há meritocracia. E eu ainda fui escolher um esporte individual. Quer coisa de mais autorresponsabilidade possível?
Só você pode mudar o seu futuro. Só você pode fazer o seu caminho.
Conheci o Marco Ruas e foi ele quem mudou a minha vida. Ele me falou: “Cara, tu vai ser o melhor do mundo, tu é muito bom nisso. Tu não acredita em mim?”. Eu respondi: “Pô, cara, tu é o Marco Ruas. Se você falar pra mim que eu vou ser, eu vou ser”.
Minha grande credencial foi a vida toda ter carregado isso: ser o melhor aluno dele. O Marco Ruas é o cara que fez história, que mudou o esporte. Foi campeão do UFC 7, pô!
Quando comecei a lutar profissionalmente, em 1990, não existia nem UFC — o evento só foi criado em 1993. Meu sonho era ser um faixa-preta de kickboxing respeitado, ter a minha academia e dar aula de luta.
Fui morar na Holanda para lutar kickboxing profissional. Deixei o Leblon e faculdade de medicina para ser faxineiro em Amsterdã. Lá, vi a valorização que os atletas têm mundialmente. Vi que dava pra viver daquilo.
Impossível dissociar minha vida da minha carreira. E quem eu sou do que eu faço. Quero trazer aqui um pouco do melhor de mim, mas também do pior — porque foi com isso que eu aprendi o que é ser um lutador.
Eis o melhor…
Vou começar com o que foi provavelmente o melhor dia da minha vida: 16 de outubro de 1998. O dia do UFC 17,5 — ou o primeiro UFC da história no Brasil.
O Marco tinha se mudado para Los Angeles em 1996, para abrir uma academia. E me chamou pra ir também. Saí da Holanda, fui morar nos Estados Unidos e comecei a dar aula com ele. Um aluno nosso, o John Perretti, era o matchmaker do UFC.
Ele falou que iam trazer o primeiro evento para o Brasil em 1998. E que tinha uma luta para mim. “Você é um striker de alto nível, luta kickboxing com os melhores do mundo na Holanda, já lutou o K-1. Quero que você lute contra o Tank Abbott”.
O Tank era uma lenda, uma grande estrela.
“Vambora!”, não tinha como responder outra coisa.
Minha grande credencial foi a vida toda ter carregado isso: ser o melhor aluno do Marco Ruas.
- Pedro Rizzo
A luta foi no Canindé, estádio da Portuguesa, em São Paulo. O Tank era um striker, tinha uma mão de aço, era o favorito. Eu era o underdog, o azarão. Meu medo era ele conectar um golpe e eu dormir. Ser nocauteado no Brasil, na frente de todo mundo, já pensou?
Tá, é pra isso que estou aqui! Hora de mostrar que o estilo de luta no qual meu mestre acredita, que é o do lutador completo, de trocar em pé, cair no chão, saber fazer chão, é o mais eficiente.
Hoje ninguém mais defende nenhuma modalidade, todo mundo é lutador completo. Se você só souber jiu-jitsu, não vai ter sucesso no MMA. E o Marco me falava isso muito antes do UFC existir. Ele estava totalmente certo desde aquela época.
Quando começo a lutar com o Tank, ele me derruba. Eu faço a guarda, estou pronto pra isso — pô, eu tinha treinado por três meses, até abrir minha cara. Então eu me defendo, não podia tomar nenhum soco forte, para não correr o risco de abrir o corte abaixo do olho.
O Big John, que era o árbitro, para a luta, mais ou menos com uns 7 minutos, e manda voltar em pé. Eu chuto a perna dele e dou um direto. E nocauteio o Tank com 8 minutos e pouco.
Foi a coisa mais legal o que aconteceu naquela noite. Apesar de toda a guerra que tinha, do jiu-jitsu contra a luta livre, o boxe tailandês e tal, o estádio todo gritava o meu nome. Porra… Aquela guerra que eu tinha na minha cabeça, aquela ideia de que os caras de outras modalidades estavam contra mim, não existia lá. Lá era a gente contra o mundo. Na hora do vamo ver, o brasileiro se une.
Tinham me falado que não podiam invadir o ringue. Que, para cada um que invadisse, eu teria 150 dólares de desconto. E, pô, pulou todo mundo lá dentro. Fiquei desesperado: “Sai do ringue, senão eu vou ter que pagar para lutar…” Hahaha!
Aquela noite do UFC no Canindé foi a noite da redenção.
Aquela noite ajuda também a acabar um pouco com aquela rivalidade entre as artes marciais, e começa a nascer a escola brasileira de MMA. As pessoas se uniram, se ajudaram, para tentar fazer de um brasileiro campeão do mundo.
Se eu pudesse voltar no tempo, voltaria todo dia para aquela noite. Só pensava numa coisa: Hoje é o dia que vai mudar minha vida.
Pra quem subiu em ringues várias vezes nos Estados Unidos com aquele coro de “U.S.A! U.S.A! U.S.A!!!”, foi muito emocionante. Eu já tinha uma história na luta, mas quando eu venci o Tank é que tive certeza que estava no caminho certo. Foi quando eu pensei: Caraca, meu irmão, vou ser o campeão dessa porra!!
Apesar de bem diferente do UFC de hoje, ele já contava com uma estrutura enorme: a gente tinha uma van que pegava e levava pro estádio, tinha hotel e tudo. O SporTV cobriu pela primeira vez o torneio. Já era muito grande para a minha realidade. O evento também reunia grandes campeões: o Royce Gracie, o Mark Coleman, o Ken Shamrock, o Don Frye.
Quando venci o Tank, eu me enchi de poder. Essa luta dividiu a minha carreira. Um caminho sem volta… Eu era conhecido no Brasil, mas, no dia em que venci o Tank Abbott, o mundo soube quem eu era.
E tudo mudou mesmo.
Minhas filhas não me viram lutar. A Laila nasceu em 2007, eu já nem era do UFC mais. A Maitê nasceu agora em 2017. Mas a mais velha brinca falando “sou filha de uma lenda viva”, porque todo mundo diz isso pra elas. É bom demais você se sentir valorizado. Isso faz eu ter certeza de que valeu a pena ter passado a vida inteira treinando. Nem posso ficar lembrando muito, senão começo a chorar…
Meu pai até hoje fala assim: “Tenho muito medo de as coisas não darem certo pra você”. E eu respondo: “Pai, fica tranquilo, já deu certo”.
Tive uma carreira maravilhosa, lutei tudo o que eu podia, com os melhores do mundo, venci muito mais do que perdi. E está feito. Quem eu sou hoje, ninguém pode apagar. Bem ou mal, eu deixei um legado dentro do esporte, de um atleta aguerrido, que lutou com os melhores e entre os melhores do mundo durante muitos anos.
…e o pior de mim
Sim, eu também carrego meus monstros. E mostrá-los é uma forma de enfrentá-los.
Depois da minha luta com o Tank Abbott, emplaquei mais duas vitórias seguidas e, ainda jovem, tive a chance de lutar pelo cinturão. Eu estava pronto, era o momento. Mas faltou eu combinar isso com a minha cabeça.
O cara que eu mais respeito da minha época, tirando o Marco Ruas, é o Mark Coleman. Ele foi tricampeão do UFC e campeão do Pride. Então, quando bati o Coleman, logo depois do Tank, eu tinha essa certeza: Cara, pode vir o mundo agora.
E então veio a luta com o Kevin Randleman. Eu estava supertreinado, voando. O evento começa e, como a minha luta era a última, minha equipe decide fazer o aquecimento quando abrem o card principal, e assim temos três lutas antes da minha.
Faço todo o aquecimento e fico pronto. Já é a luta anterior à minha, eu coloco a camisa, passo vaselina e fecho a luva para ir pro ringue. A porta abre, e o Mark Coleman, que era o treinador do Kevin, fala: “Olha, não vai ter luta. O Kevin estava aquecendo, escorregou no chão molhado, bateu a cabeça e apagou”.
O quê? Como não vai ter luta?
Volto frustrado pra caramba. Sento com minha equipe e o Marco Ruas me manda tirar duas semanas de férias, curtir, fazer minhas coisas e esperar remarcarem a luta.
Então, eles remarcam. E o que acontece no combate é totalmente atípico para mim. Eu estou lutando, e no terceiro round o Kevin entra para me derrubar. Só que ele entra alto... Aí explode direto na minha cara.
BUUUUMMM!!!
Topada de frente, cabeça com cabeça. A última coisa que me lembro é quando bato na grade, defendendo a queda. Eu chamo o Big John McCarthy, o árbitro, e falo: “John, John... it was a headbutt, it was a headbutt”. Eu acuso a cabeçada. E o árbitro diz: “Pedro, não foi intencional, continue lutando”.
Não me lembro de ir pro corner, não me lembro do quarto nem do quinto round. E eu perco por pontos. No vestiário, eu olho para o Marco, parado, triste, e pergunto: “Eu perdi?”. O Marco: “Perdeu, pô... E já perguntou isso 40 vezes”.
Quando você é nocauteado, você não entende o que aconteceu e fica perguntando. E, quando retomei a consciência, quis saber se eu tinha sido nocauteado, porque não lembrar e ficar nessa confusão é sintoma de nocaute. Não lembrava nem como tinha chegado no vestiário.
Foi uma luta em que estava todo mundo vaiando, eu muito apático. Não lembro de nada, mesmo. Nem passei vergonha, porque eu não lembro.
Depois venci Dan Severn e Josh Barnett com um nocaute que entrou para várias listas como um dos melhores de todos os tempos. E então marcaram minha luta com o Randy Couture em Las Vegas.
Treino pra caramba, estou pronto novamente. E, na semana do UFC, o Dana White me chama para comer alguma coisa e conversar. “Cara, você é o campeão, ganhou do Barnett, vai ser só mais uma luta”. Aquilo, que era pra ser uma força, me desestabiliza.
Em vez de eu pensar que, se ganhasse a luta seria isso ou aquilo, dentro da cabeça o negócio foi: E se eu perder? Entrou aquela pulga atrás da orelha, e comecei a pensar que não podia perder, que todo mundo apostava em mim, o Marco, o Dana, todos…
Foi um peso que eu criei, mais ninguém. Para o Marco Ruas não interessava. Se ganhasse ou se perdesse, eu era atleta dele, e o Marco me amava. A minha família também. Mas eu inventei essa pressão de não poder decepcionar as pessoas que estavam acreditando em mim.
Naquela noite, 2 de maio de 2001, eu fui campeão do UFC.
- Pedro Rizzo
Eu entrei naquele cage, para a luta contra o Couture, com isso na mente: Cara, eu não posso perder! Eu não posso perder!! Quando você não pode perder, você não luta para ganhar: você luta para se defender. E aquilo me afetou.
Acontece que, mesmo assim, eu tenho certeza que ganhei aquela luta.
Certeza absoluta.
Naquela noite, 2 de maio de 2001, eu fui campeão do UFC.
Não esqueço a data porque meu aniversário é em 3 de maio. E naquela noite eu fui campeão mundial.
Ou melhor, eu fui campeão, mas não ganhei o título — porque os árbitros não deram a vitória para mim. Eu fiz tudo o que podia naquele ringue, contra todos os demônios da minha cabeça, e os juízes tiraram minha chance de ser campeão.
Quem fazia a entrevista depois da luta, em cima do ringue, era o Frank Shamrock, que também tinha sido lutador. Ele me abraçou e falou assim, no microfone: “Não sei que luta os juízes viram, mas você foi campeão do UFC esta noite”.
Até o Randy Couture tinha certeza que tinha perdido. Ele é uma grande pessoa, gosto muito dele, nós somos amigos. Mas ele sabe disso: aquele dia, ele perdeu.
Depois dessa derrota, eu quebrei psicologicamente. Tive a chance da revanche, mas fui para a segunda luta com o Couture com a cabeça muito ruim. O Marco todo dia me falava: “Cara, tu não perde pra ninguém”. Mas eu sofri um corte, o juiz parou a luta e o Randy Couture ganhou.
Hoje, olhando minhas lutas, tenho convicção de que não sofreria as derrotas que sofri — e não porque sou metido, mas porque conheço muito de luta e, sem modéstia, eu lutava pra c****.
Mas a primeira derrota para o Couture foi um divisor de águas na minha vida. Não é que passei a não acreditar mais em mim, mas comecei a pensar que eu me prepararia da melhor forma que pudesse, mas, mesmo assim, no final, eu não sei se seria campeão.
Nem melhor nem pior. Apenas um lutador
A maior guerra, para um atleta, é com sua própria cabeça.
Eu amo a adrenalina, eu amo lutar, estar dentro do ringue, trocar pancada.
Eu amo vencer.
Só que a coisa que eu mais odeio no mundo é aquela caminhadinha do vestiário para o cage. Aquilo, para mim, é o inferno na vida. Parece que meu coração vai pular. E olha que, se somar inclusive kickboxing, tenho 67 lutas.
Foram 67 caminhadas do inferno.
Isso dura até ter o primeiro choque, quando acontece a primeira troca — aí acaba tudo. E só então eu penso: Caraca, por isso quero estar aqui. É quando vira o melhor momento do mundo.
Lutar é o melhor momento do mundo.
Mas, se o melhor momento é esse, o pior é a derrota. Meu irmão, perder é horrível. Não existe nada igual ao sentimento ruim de perder uma luta. Quando perdia, eu ficava uma semana sem dormir.
Quer saber? Tudo passa. O tempo é o melhor remédio que existe. A cada dia o coração vai acalmando. O tempo é uma dádiva de Deus. Ainda bem que existe o dia seguinte, o dia depois de amanhã e o outro dia. Ainda bem que existe família, ainda bem que existem amigos.
Tem uma frase que falo todo dia para meus atletas, que acho que cabe bem aqui no fim deste texto:
“Nunca foi pelo dinheiro, nunca foi pela fama.”
Tudo foi só por amar esse esporte e por saber do poder transformador que ele tem.
Se tivesse que dar faxina, enfrentar meus demônios e caminhar no inferno mais uma vez, eu faria tudo de novo. Porque tudo o que fiz foi para que um dia eu pudesse chegar à Usina de Campeões, projeto social que coordeno para formar, antes de tudo, cidadãos. Atendemos 250 crianças, mas trabalho, ao todo, com mais de mil pessoas, porque trabalho com as famílias dos alunos. Trabalho com o Conselho Tutelar e com o Tribunal de Justiça para salvar vidas.
A gente está aqui pelos outros, não pela gente. Estamos aqui para ajudar as pessoas, para servir. O que você fizer, faça para mudar a tua vida e mudar a tua história, para que você seja um exemplo para os outros. Para que as pessoas se lembrem de você não como um campeão de luta, mas como um cara que mudou vidas.
Eu treinei a minha vida toda, eu lutei as batalhas da minha vida toda, eu lutei as minhas guerras todas, eu fui o lutador que fui, o ser humano que eu sou, tudo isso para ter a Usina de Campeões.
Esse é meu maior título.