Eu Só Quero Dizer os Nomes das Minhas Irmãs
Sabe aquela sensação quando você olha para o seu telefone, e acaba de receber muitas chamadas perdidas, e fica com aquelas borboletas no estômago?
Assim foi esse dia.
Era 2014, verão depois do meu ano de estreia com os Clippers. Eu tinha acabado de malhar em Los Angeles com um dos meus melhores amigos e, quando peguei meu telefone, vi que havia várias chamadas perdidas. Uma era da minha irmã Keiosha. Outra da minha mãe. E depois uma de um número de Baltimore, que não reconheci. E havia um correio de voz, também. Tipo: Oi, sou o detetive fulano de tal. Preciso que você me ligue de volta neste número quando receber esta mensagem.
Liguei para minha irmã primeiro. Ela estava chorando. Disse que minha irmã mais velha, Mia, estava morta. Alguém havia tirado sua vida.
Simples assim, ela se foi. Eu não podia acreditar. Ainda não consigo acreditar até hoje.
Eu não sei quem você é, o quão duro você pensa que é. Mas ouvir algo assim arranca o coração de qualquer um. Você não é o mesmo depois dessa ligação. Nunca.
Eu voei para a Carolina do Norte pra ficar com Keiosha, minha mãe e todo mundo imediatamente. Eu estava devastado. Mas eu tinha que me manter firme. Eu era o Big Bro, sabe? Não podia perder o chão. Eu tinha de estar lá para elas.
Quando você perde alguém em sua vida, isso é sempre difícil. Mas quando essa pessoa é tirada desta terra??
Cara, deixa eu te dizer algo bem rápido sobre mim e minha irmã. Mia era minha companheira. Minha irmã mais velha. Ela estava tão confortável em seu próprio corpo que, de certa forma, isso me fazia ser mais eu mesmo também. Eu sabia que havia transfobia por aí, mas eu tinha interesse em saber mais sobre o que minha irmã estava passando diariamente. Quando ela morreu, eu senti como se tivesse falhado em protegê-la. Como se eu tivesse falhado em ser o irmão mais velho.
Quando você está sofrendo por algo assim, a única coisa que pode fazer é se apoiar em sua família, nas pessoas que estão passando por isso com você. Ninguém mais pode entender esse tipo de dor.
Então, depois que Mia faleceu, minha irmã Keiosha se tornou minha rocha. Ela foi morar comigo alguns anos depois, quando eu estava em Detroit, e começou a viajar comigo para todos os meus jogos. Ela sempre estava na primeira fila torcendo por mim, e eu a via todos os dias quando chegava em casa do treino. Processamos a morte de Mia juntos e, por mais doloroso que fosse não tê-la conosco, começamos a juntar os cacos e encontrar um caminho a seguir.
Então, em 2019, tudo mudou.
Era outubro e estávamos na estrada em Orlando. Eu tinha me machucado, então eu não iria jogar naquela noite. Keiosha ficou em Baltimore, mas meus dois irmãos mais novos foram ao jogo comigo.
Mia era trans, e ela lidou com muita rejeição por causa disso.
Sabe nos filmes, quando há uma explosão ou algo assim, e todo o som desaparece, e vem um barulho muito alto?
Foi assim. Isso é praticamente tudo o que me lembro daquela noite.
Ainda não consegui juntar todas as peças. Tudo o que sei é que, em um minuto, Keiosha está no FaceTime com minha irmã mais nova. Elas falam sobre o jogo e tal. A próxima coisa que eu sei é que, no intervalo, minha irmã me grita: “Keiosha levou um tiro, Keiosha levou um tiro, Keiosha levou um tiro”.
E meu mundo inteiro desaba.
Eu estou tipo... flutuando no espaço. Os torcedores provavelmente gritando. Meus irmãos chorando. Mas não ouvi nada. Apenas aquela explosão na minha cabeça.
Sem palavras. Sem lágrimas. Apenas esse som.
Às vezes, olhar para uma foto ou cheirar algo traz de volta uma memória de Mia ou Keiosha, e eu fecho meus olhos com força e tento mantê-las ali.
Como se eu cheirasse um perfume ou algo assim e tivesse um flashback da igreja que a gente frequentava.
Minha avó era ministra e seu sobrenome é Williams, então todos na igreja costumavam nos chamar de “crianças Williams”. Eu lembro que minha avó sempre tentou nos fazer sentar na frente da igreja! Todo filho de pregador sabe do que estou falando, cara. Eu sempre tive certa preguiça de sentar lá na frente, então, no meu do culto, sempre dava um jeito de ir para o fundo. Às vezes, quando era hora de inclinar nossas cabeças e orar, eu simplesmente dormia.
A igreja não era minha praia quando criança. Mas era a da Mia. É aí que eu me lembro dela sendo mais feliz quando éramos pequenos. Acho que é por isso que essas são algumas das minhas memórias mais vívidas. Eu me lembro do púlpito vermelho, onde o pastor ficava, com cadeiras vermelhas e uma bem grande que parecia que um rei deveria sentar lá em cima. O teto branco. As cadeiras vermelhas onde ficava o coral. Os diáconos de pé do lado esquerdo. Quer dizer, eu me lembro até do cheiro disso. Como todos os perfumes das velhinhas meio que se misturavam no ar com o cheiro dos velhos bancos de madeira.
Mia era a chefe da equipe de coreografia de louvor, então ela sempre estava mais focada nos domingos. Acho que ela entendeu muito mais o sentimento porque era um pouco mais velha, mas tudo o que sei é que ela adorava a igreja. Isso era coisa dela.
Lembro muito de suas apresentações na igreja. Mas há uma específico que realmente mexe comigo. Quando fecho os olhos, essa é a memória que estou tentando trazer de volta. Não me lembro da música que estava tocando, mas sei que deve ter sido algum hino da igreja negra. E eu realmente não me lembro de muitos movimentos. Eu só me lembro deste momento, quando Mia estava na frente do púlpito, e ela saiu correndo e girando como uma bailarina pra cima e pra baixo no corredor da igreja.
Eu não posso nem explicar porque isso se destaca na minha cabeça. É como se ela fosse ela mesma naquele momento, sabe? Sem vergonha, sem medo. Sem travas nem nada. Esse é o tipo de pessoa que Mia era. Ela poderia se soltar completamente, sem medo nenhum. Era como se não estivéssemos lá olhando pra ela. Era como se ela estivesse livre, o que eu acho que era apenas diferente de sua realidade diária.
Nós éramos originalmente de Baltimore e nos mudamos para Kinston, Carolina do Norte, quando éramos pequenos. Mas a gente voltava durante os verões e tudo mais.
Todo mundo sabe como é Baltimore. Não preciso dizer que era uma área difícil. É a Central de Armas. Merda, é a Central da Violência, ponto. Só de saber o que aconteceu com minha irmã Mia, o que aconteceu com tantas outras mulheres trans por toda a cidade de Baltimore… Há muitos casos arquivados que nem foram investigados. Nunca serão. Eles não fazem nada sobre isso há anos e seguem sem fazer.
Então é de lá que nós somos. Mas minhas irmãs eram fortes e podiam se defender. Eu tinha orgulho das mulheres que elas eram. Mia era muito sincera. E, embora tivesse um coração enorme, ela também sabia ser durona quando precisava. As pessoas na cidade sabiam que ela não estava pra brincadeira.
Há muitos casos arquivados que nem foram investigados. Nunca serão.
E Keiosha também podia se defender. Ela queria ser boxeadora por um tempo. Keiosha era uma mulher muito forte. Ela teve meu sobrinho Carson aos 19 anos, e eu a vi amadurecer muito. Ela e o pai de Carson realmente se esforçaram e tentaram dar uma vida melhor para o filho. Eles foram ótimos pais para o meu sobrinho.
Sabe o que é engraçado? A lembrança que mais me vem à mente com Keiosha é que ela estava sempre naquele telefone rs. Ela ficou no Facebook. Esse era provavelmente seu aplicativo favorito. Ela adorava tirar fotos. E ela tirava muitas fotos.
Eu não entendi no começo, todas as fotos e tal. Eu pensei que era apenas coisa de jovens. Mas agora entendi. E sou muito grato por ela ter registrado todos esses momentos, até as selfies patetas que fazíamos juntos.
Você nunca sabe quando tudo vai acabar.
Minhas irmãs se foram. Realmente se foram deste mundo.
Mia tinha 26 anos. Esfaqueada até a morte em Baltimore.
Keiosha tinha 22 anos. Foi morta a tiros em Baltimore.
Perdi duas irmãs nos últimos sete anos da minha vida para uma violência sem sentido. O tipo de coisa que crescemos ao redor, o tipo de coisa da qual eu tentei protegê-las.
Não parece real.
Havia um suspeito no assassinato de Mia e o caso foi a julgamento, mas essa pessoa não foi condenada. Eles não conseguiram encontrar a arma exata do crime ou algo assim. É tudo tão confuso. Eu não entendo isso. Realmente não entendo isso até hoje.
Esse é o problema... Quando alguém é morto, não acontece como na TV. Nem tudo é resolvido no último capítulo. Todas as coisas do tribunal são realmente confusas, e talvez você nunca consiga justiça, e você pode deixar isso te consumir por dentro, ou você pode encontrar maneiras de honrar as vidas que você perdeu.
Acho que é por isso que eu queria escrever algo a respeito das minhas irmãs neste Dia Nacional de Conscientização sobre a Violência Armada.
Eu não quero pregar nem nada. Eu não estou fazendo propaganda de algum serviço público sobre violência armada. E não tenho todas as respostas sobre como tornar as comunidades mais seguras. Eu só quero tentar tratar disso como um dia de lembrança, se é que vocês me permitam.
Eu só quero dizer os nomes das minhas irmãs. Dessa forma, elas viverão através de sua memória.
Mia era trans, e ela lidou com muita rejeição por causa disso. E acho que ela provavelmente morreu por causa disso também.
Uma das coisas mais difíceis de sua morte é perceber que, embora, como seus familiares, a gente demonstrasse amor e apoio, havia muita coisa que não sabíamos. Tanto que talvez devêssemos ter perguntado mais a ela. Como o que ela passou no dia a dia. Eu acho que ela provavelmente sofreu muito. Ela não queria que a gente soubesse sobre os diferentes problemas que ela passava em sua vida pessoal.
É o não saber que me tira o sono à noite, sabe?
Eu tinha muitas perguntas na minha cabeça depois que ela deixou esta terra. Tarde da noite, eu estava deitado na cama pensando: Com o que ela realmente lidou? Quais eram suas frustrações?
Assim, eu só quero usar minha plataforma para tentar jogar luz sobre os problemas que as mulheres trans enfrentam, especialmente as mulheres trans negras, e continuar lutando por elas.
Olha, essas coisas que eu estou escrevendo... É muito, muito difícil mergulhar nessas memórias sombrias repetidas vezes. Você naturalmente só quer esquecer isso. Para seguir em frente o mais rápido possível. Você não quer fechar os olhos e imaginar as partes sombrias. Você só quer se lembrar da luz. Mas, por mais difícil que seja desenterrar essas coisas, não consigo imaginar isso acontecendo com outra pessoa que conheço. Não consigo receber outro telefonema. Não consigo fechar os olhos e imaginar outra pessoa indo embora cedo demais.
Ninguém deveria ter a vida ceifada aos 22, aos 26 anos.
Como parar toda a violência e a matança que acontece em Baltimore está além de mim. Mas eu estou realmente cansado disso. Eu só queria que as coisas fossem diferentes.
Acho que minha pergunta aos homens e mulheres no Congresso é apenas... POR QUÊ?
Ninguém deveria ter a vida ceifada aos 22, aos 26 anos.
Por que vocês não tomam mais medidas sobre o controle da venda de armas? Verificação de antecedentes, atualização da Lei de Violência Contra a Mulher... Há tanto que pode ser feito para fazer a diferença e salvar vidas!
Isso é tudo que posso dizer, cara.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes. Eu gostaria de ainda ter minhas irmãs aqui.
Mas não importa o que aconteça, ninguém pode tirar as lembranças que tenho dos bons momentos que tivemos. A alegria, o riso. Aqueles são meus.
Na noite do draft, alugamos uma pequena academia no centro comunitário em Kinston. Fiquei em casa, com todos os meus amigos e familiares, e assistimos juntos. Eu nunca vou esquecer o olhar no rosto de Mia quando eles chamaram meu nome. Eu nunca esquecerei isso. Só de saber o que eu seria capaz de fazer por nossa família agora, eu apenas olhei pra ela e pude ver em seu rosto aquele orgulho.
Ela tinha um sorriso enorme.
Um sorriso enorme.
Memórias assim, ninguém pode tirar. Elas vivem para sempre.