Meu Dicionário
Fala, torcedor palmeirense! Tá chegando a hora, hein? Segunda final de Libertadores seguida! Como é que vocês estão se sentindo?
Rapaz, por aqui aquele frio na barriga, sabe como é… Não tem jeito. Acho bom até, sabia? Porque mostra que a gente é ser humano, não máquina. Pra mim, o futebol sempre foi o melhor jeito de não esquecer que somos humanos.
Quando o jogo começa, o frio na barriga passa. Quer dizer, acho que vira outro sentimento, mais forte, mais poderoso, que eu nem sei se existe palavra pra descrever. Falando nisso, eu queria contar uma coisa pra vocês. Sobre isso aí, as palavras. O significado delas.
Tem uma palavra que o nosso treinador, o Abel, sempre diz pra gente: desfrutem. A primeira vez que ouvi anotei no celular e fiquei pensando: “Poxa, uma palavra só pra dizer tanta coisa importante”. O que o Abel quer é que a gente entenda cada momento nosso no futebol, nos treinos, nas viagens e principalmente nos jogos como instantes únicos que estão construindo as nossas histórias, tijolo por tijolo.
Nós somos e seremos esses momentos. Eles são as nossas vidas, por isso precisamos aproveitar, desfrutar como uma bênção.
Foi pensando nisso que, depois da semifinal contra o Atlético-MG, ainda no vestiário do Mineirão, eu peguei meu celular e iniciei uma lista de palavras naquele arquivo onde já tinha anotado desfrutem. Fui colocando uma depois da outra, o que me vinha na cabeça na hora, e acrescentando termos novos nos dias seguintes. Fiz isso porque eu queria saber que sensações as palavras me traziam conforme eu fosse pensando nelas. Sem ordem, sem critério, nada. Só vontade de refletir um pouco: sobre a final que se aproxima, sobre a minha trajetória no futebol, a minha família, o Palmeiras e os mais de 250 jogos que já fiz aqui, sobre deixar uma boa impressão na história imponente desse clube.
Essa lista era pra ser uma coisa pessoal, só minha, mas achei legal dividir com vocês, pra agradecer por tanto apoio que eu recebo desde o primeiro dia que cheguei.
Então, vamos lá. Depois de “desfrutem”, na minha lista eu escrevi abraço. Essa palavra resume a minha primeira memória de criança: eu muito pequeno, talvez com uns 3 ou 4 anos, no colo do meu pai assistindo aos jogos na TV nas noites de quarta-feira. Era um ritual nosso, um momento de carinho de pai e filho. Ele ligava a televisão, me pegava no colo, me abraçava e me transmitia o amor dele pelo futebol. Me sinto abraçado de novo só de pensar.
Meu pai jogou bola também. Foi amador e só não chegou a profissional, que era o sonho dele, porque a minha avó tinha muito receio e não permitiu que ele viesse pra São Paulo fazer um teste.
A gente é da região de Três Fronteiras, Santa Fé do Sul e Urânia, no interior de São Paulo. Meu pai lá, na juventude dele, era conhecido como Motorzinho, por causa da vontade, da dedicação, da entrega quando jogava bola. Dizem que o homem corria, hein? Que se deixassem ele furava o alambrado do campo correndo. Jogava de lateral-esquerdo. Sempre muito competitivo, querendo ganhar, ajudar… Só parava de lutar, só desligava da tomada quando o juiz apitava o fim da partida. Um motorzinho mesmo. Me orgulho de carregar essa característica dele. Até brinco que eu gosto do apelido Willian Bigode, mas também ficaria feliz se fosse Willian Motorzinho. Por isso essa é a terceira palavra na minha lista: motorzinho.
Tem uma diferença, porém, entre nós dois. Meu pai, nessa vontade toda dele, tinha o sangue meio quente. Eu sou mais equilibrado. Aprendi isso ao longo da carreira, principalmente com o Tite, um cara nota 10, que não por acaso está no comando da seleção brasileira.
Futebol precisa de equilíbrio. E os caras equilibrados ajudam tanto quanto os de sangue quente — às vezes até mais. Por exemplo, eu não sou titular no Palmeiras neste momento. Claro que me incomoda ficar no banco. Só eu sei o que passo nesses períodos de jogos decisivos em que estou mais fora do que jogando. É duro. Mas eu entendo que é uma opção tática do treinador e que posso contribuir de outra forma. O ambiente do Palmeiras proporciona isso. Nosso forte é o coletivo.
Então, quando eu não jogo, acho que contribuo dando uma força para um companheiro mais jovem que também está no banco, fazendo ele ver que ficar bravo ou tomar atitudes ruins pode nos prejudicar. Que, em vez de lamentar, é melhor a gente estar pronto pra entrar, nem que sejam só 5 minutos. Muita coisa acontece no futebol em 5 minutos. Um dicionário inteiro, se bobear.
A gente precisa manter a calma pra conseguir trabalhar direito quando a oportunidade aparecer. Em casa até pode reclamar, xingar, explodir de nervoso. Mas, no calor do jogo ou nos treinamentos, tem que ter equilíbrio — a quarta palavra da lista — porque é assim que a gente vai fazer o melhor pra equipe, pro coletivo, pro clube, pra nós mesmos, pra torcida, e ficar com a consciência tranquila.
Bom, até aqui eu falei das palavras boas e positivas que anotei. Mas preciso contar que na sequência vem uma meio pesada: renúncia. Tem a ver com o meu começo no futebol, mas é parecido pra quase todos os jogadores que chegam ao profissional. Com 11 anos eu fui morar com a minha avó, uma tia viúva e um primo em outra cidade pra poder jogar numa escolinha. Só 11 anos. Na época a gente nem se dá conta, tamanho é o desejo de seguir o sonho, de tentar transformar a paixão pelo futebol em profissão. Mas eu tenho uma filha de 9 anos e agora compreendo que esse passo pode ser difícil pra uma criança.
Eu escolhi a renúncia. Não foi fácil.
- Willian
No meu caso foi um vizinho nosso quem me ajudou no primeiro dia. Ele me ensinou onde eu tinha que ficar, no trevo da rodovia, pra pedir carona pro treino e, depois, na volta pra casa a mesma coisa.
Imagina só: um menino de 11 anos entrando no carro e no caminhão de desconhecidos. Eu fazia isso. Todos os dias.
Aos 13, eu comecei no meu primeiro clube, o Rio Preto, e aí fui 200 quilômetros pra longe, saí de casa pra valer e fiquei sozinho de verdade. Nessa idade, estamos na descoberta sobre bebida, namoradinha, festa, tudo aquilo que o mundo já nos oferece. Na época era algo que nos prendia muito, algo prazeroso, porém passageiro! Lembro que no meu grupo na escolinha tinha mais uns dois ou três garotos com potencial também. Eles tiveram a mesma oportunidade que eu tive de sair pro clube, mas não quiseram. Preferiram a segurança de continuar com a família, podendo curtir a vida de adolescente. Não condeno ninguém, é claro. Cada um faz a escolha que acha melhor.
Eu escolhi a renúncia. Não foi fácil.
Lá em casa a gente nunca teve luxo, mas também nunca faltou nada. Aí acabei num lugar em que morava debaixo da arquibancada, tinha certa dificuldade pra me alimentar, enfim, aquele caminho complicado que até hoje é comum pra jogador brasileiro que tá começando. Às vezes as pessoas de fora do futebol, e até mesmo os garotos que sonham ser jogadores, enxergam só o presente: a gente chegando pra treinar em carro importado, dinheiro na carteira, indo ao shopping e podendo comprar o que quiser. Mas eu acho importante manter esse olhar pro passado, sabe? Lembrar como foi. Porque no futebol é provação o tempo todo. Uma provação que nunca mais vai te deixar.
Você pode jogar nos maiores clubes do país, do mundo, seleção… Ter um quarto cheio de troféus… Conseguir um bom contrato e tudo mais… Mas a cobrança é tão grande pra que a gente seja máquina em vez de ser humano, pra que a gente só vença e nunca perca, que só acerte e nunca erre…
Rapaz! Se a gente fica pensando nisso, não consegue mais levantar da cama de manhã. Como eu falei, tem que equilibrar essa pressão toda. E um jeito de equilibrar, lá vem a próxima palavra, é valorizar.
Pessoal, olha só, eu estou com 35 anos. Tenho convicção de que grandes coisas ainda estão por vir, mas a verdade é que eu não tinha conquistado NENHUM título até os 23 anos. Hoje eu tenho quatro Campeonatos Brasileiros, uma Copa do Brasil, duas Libertadores (espero que em breve sejam três, se Deus abençoar), um Paulista e um Mineiro. Mas não valorizo só os títulos.
Mesmo quando não é campeão, o Palmeiras é um time que tá sempre chegando. Seria legal se as pessoas valorizassem também a regularidade, ainda mais num futebol tão competitivo como o nosso. Ela traduz o empenho, a vontade, a renúncia de todo mundo que tá ali. Pra ganhar tudo o tempo todo, desculpem se eu insisto nisso, só se a gente fosse máquina ou jogasse contra o vento. Claro que a gente joga pra vencer, só que do outro lado tem um adversário lutando pela mesma coisa.
Por já ter certa vivência, falo com tranquilidade: dos mais experientes aos mais jovens, esse grupo do Palmeiras é formado por caras com ambição, caras que quanto mais vencem, mais querem vencer. A galera ali dentro tem fome!
Do meu lado, posso dizer que, à essa altura da vida, me sinto com a mesma fome de antes. Ou seja, além de mais títulos, mais glórias, eu gostaria de ter meu nome marcado na história do Palmeiras. Digo isso de coração. Eu gostaria de ser lembrado. É o desejo de todo jogador.
Peraí, pessoal, deixa eu anotar outra palavra aqui: história. É isso. Eu quero chegar aos 60 anos, pegar meus netos no colo e mostrar pra eles um recorte de jornal, um vídeo dos meus gols, minhas assistências, enfim, mostrar a caminhada do cara que ajudou a botar uns tijolos na construção desse clube gigante.
Bom, eu tenho uma porção de motivos pra desejar isso, mas vou falar de um que vale por todos: gratidão — essa já tá na lista e vou contar por quê. Um dia depois da classificação contra o Atlético, eu e minha esposa passamos pelo momento mais triste de nossas vidas. Perdemos nosso filho Antonio Miguel, que tinha 25 semanas de gestação.
O Palmeiras foi bastante sensível com tudo. Eu pude me afastar por alguns dias, ficar com minha esposa e, na intimidade, viver o nosso luto. Esse tempo foi fundamental para nos ajudar a seguir em frente. Mas, além do acolhimento por parte da família, amigos, colegas de profissão, direção e de toda torcida, teve um episódio que me faltam palavras de novo pra descrever.
Foi assim: logo que eu retornei após esse período difícil, nós fomos jogar contra o Ceará, em Fortaleza. Eu tô saindo do hotel e, quando menos espero, um garotinho se aproxima. Ele vem me dar um desenho, uma folha de papel. O pai dele diz: “Willian, ele ficou a noite toda desenhando. Fez tudo sozinho, pra você”. Eu olho pro papel. No desenho tinha eu com o uniforme do Palmeiras chutando uma bola e, do meu lado, um anjinho numa nuvem. No alto da folha estava escrito “Forza, Willian”. E atrás, a assinatura do garotinho, o Matheus, de apenas 8 anos. Ele também desenhou o símbolo do Palmeiras e o meu autógrafo.
Olha, vou falar, viu…
Matheus, se você estiver lendo esta carta, eu quero que você saiba: nunca, jamais vou esquecer o que você fez por mim, minha esposa, minha família. Foi algo marcante entre tantas emoções que o futebol me proporcionou. Muito obrigado. E, agora, dividindo aqui com outros palmeirenses o seu gesto amoroso, me ocorre de acrescentar mais uma palavra: futuro.
Esse termo pode parecer meio vago, mas, para mim, diz tudo. Quando eu penso em futuro, eu penso nas crianças. E me recordo da criança que eu era: determinada, esperançosa, perseverando sempre em busca do meu sonho. Desde cedo aprendi que ajudar uma criança é plantar uma semente para o futuro.
Há quatro anos, conheci o Marcos Freire e o Jonnes Queiroz numa igreja em Belo Horizonte e eles me apresentaram a Baluarte. É um projeto que acolhe centenas de crianças desfavorecidas em Luanda, Angola. Mais do que um projeto, “baluarte” significa refúgio, fortaleza e segurança, que é o que elas encontram lá desde que a ONG foi inaugurada.
Descobri que todo mundo tem um propósito.
- Willian
Em 2019, passei 10 dias em Angola acompanhando de perto o trabalho no projeto. O Raphael Veiga, que também é padrinho da Baluarte, foi junto comigo para conhecer. Cara, a gente achou que tava levando alguma coisa para as crianças, mas, no fim, nós é que saímos edificados. O apoio ao projeto vai muito além disso. É realmente levar uma mudança de mentalidade, para que elas tenham esperança.
Descobri que todo mundo tem um propósito na Terra. E o meu é compartilhar a fé de que podemos construir um futuro melhor não só para os nossos filhos, mas para todas as crianças. O que me lembra outra palavra para fechar a minha lista. Não vou colocar mais nenhuma depois. Esta vai ser a última.
A palavra é acreditar.
Palavra bonita, além de tudo, né? Bem poderosa. Foi assim, acreditando, que saiu o gol do Breninho na final da Libertadores do ano passado. Pra muita gente o jogo estava indo para a prorrogação. Mas nós acreditamos. Nós lá dentro ou na beirada do campo, nós na arquibancada, nós no colo de nossos pais assistindo pela TV. Nós acreditamos. E lá estava o Breno bem posicionado para aproveitar o cruzamento do Rony e garantir o título pro Palmeiras.
Acreditar, acreditar, acreditar.
Acreditar que o jogo só acaba quando o juiz apita. Acreditar em nós. Acreditar no nosso trabalho. Acreditar que podemos fazer história. Acreditar na nossa imensa torcida. Acreditar que somos seres humanos e, por isso, mais fortes que qualquer máquina. Acreditar no companheiro. Acreditar que ele vai acertar, mas, se errar, alguém vai estar por perto pra ajudar. Acreditar que a gente pode.
Acreditar em mais uma conquista da América.
Acreditar no Palmeiras.
Acreditar.
Desfrutem!
Um abraço carinhoso,
DubGod