Em Dezembro de 81
Querido torcedor rubro-negro,
Tenho um convite pra te fazer. Eu quero propor uma viagem no tempo. Para ser mais direto, ao ano de 1981.
Você já deve imaginar o que eu realmente quero dizer. Até porque hoje faz quatro décadas que nós botamos os ingleses na roda no Japão…
Mas tem algumas coisas que você ainda não sabe sobre aquele time do Flamengo. E é isso que eu pretendo te contar agora.
Hoje, com todos os títulos que o Mengão ganhou nos últimos anos, é fácil falar. Só que eu queria que você sentisse um pouco do que nós sentimos ao levantar o troféu em Tóquio.
Ao conquistar o mundo para a nossa Nação.
O único jeito de fazer isso é voltando no tempo, te contando essa história do mesmo jeito que eu vivi as semanas mais mágicas da minha vida como jogador e torcedor do Flamengo.
Espero que seja tão inesquecível para você como é para mim.
Rio de Janeiro, Brasil - 8 de novembro de 1981
Foram 36 dias, 11 jogos, uma goleada e três campeonatos. Trinta e seis dias que marcaram o Flamengo como um dos maiores da história.
Mas, pra saber como a gente venceu os ingleses, tem que saber primeiro do 6 a 0 em cima do Botafogo. O Jogo da Vingança, quando a gente devolveu a goleada que atormentava a nossa torcida.
Sempre que eu entrava em campo contra o Botafogo, eu pensava naquele placar de 1972. Engraçado que 10 anos antes, eu, ainda moleque, fui assistir à final do Carioca. Mais de 150 mil pessoas no Maracanã. Botafogo 3 x 0 Flamengo.
Mas eu não saí aborrecido, não. O Garrincha marcou três gols. Ele tinha acabado de ser campeão do mundo com a Seleção, era o ídolo de todos nós. Na verdade, eu fiquei encantado com o carinho que a torcida do Botafogo tinha por ele. Era muito bonito e passei dias comovido com aquilo. Por isso, não posso dizer que fui embora triste do Maracanã.
Só que ali começava a minha história com o Botafogo. Eu cresci com essa rivalidade. E, depois que a gente sofreu a goleada, preciso admitir que eu não conseguia parar de pensar na vingança.
Em 72, eu já fazia parte do elenco principal, mas era apenas um torcedor na arquibancada quando o Botafogo abriu 3 a 0 no primeiro tempo, em pleno aniversário do Flamengo. De tanta raiva, decidi ir logo pra casa. Quando cheguei em Quintino, já estava 6 a 0.
Eu só queria devolver…
E aconteceu. Oito de novembro de oitenta e um.
Fomos para o vestiário vencendo por 4 a 0, mas, para mim, o jogo não estava ganho. Eu era o único remanescente do elenco de 72. Queria pilhar os meus companheiros, mostrar que aquela era a nossa chance de dar o troco.
Foi uma vingança e, também, o começo da nossa arrancada. Da afirmação definitiva da nossa geração. Como torcedor, eu nunca vi o Flamengo ganhar do Botafogo, que levava vantagem no confronto histórico. Como jogador, consegui não só empatar, mas também colocar 10 jogos de frente pro Flamengo.
Eu jamais poderia aceitar que aquela goleada para um rival ficasse impune.
Montevidéu, Uruguai - 23 de novembro de 1981
Seis dias depois da redenção sobre o Botafogo, mais de 90 mil pessoas no Maracanã para assistir o primeiro de três jogos da final da Libertadores.
Flamengo 2 x 1 Cobreloa. Dois gols meus e um dente a menos. Aquele foi o cartão de visita do nosso futebol e o de violências dos chilenos. Um anúncio do que ia acontecer no segundo jogo, em Santiago.
Na época do juvenil, eu e o Rondinelli estávamos num jogo ruim, chato à beça, aquela moleza e tal. Deu intervalo, a gente foi beber água na pia… E a p#rr@ da pia caiu na mão dele! Jorrou sangue, tinha que tomar ponto. Mas ele não quis nem saber, enrolou uma toalha e voltou pro campo. Jogou o segundo tempo todo e, só no final, foi ver de tomar ponto.
Então, quando você chega no Flamengo, tem que entender que o Flamengo é briga, luta e garra. Quando você entra no Maracanã e vê aquela torcida, ou fica maluco junto ou, por melhor que seja, acaba saindo do time.
E eu acho que foi esse espírito que fez a gente aguentar o segundo jogo da final.
Violência em campo sempre existiu, mas aquilo lá era outra história.
O Cobreloa foi um time diferente. Eu lembro que o Roque Serulo, juiz que apitou nossos jogos contra o Deportivo Cali, falou uma coisa assim:
— Pô, tem um time que não é mole, não. É um time violento pra cacete, o Cobreloa.
E era até pior que isso. Porque esse jogo não foi Cobreloa contra Flamengo, mas Chile contra Flamengo. Todo mundo lembra do dia: tinha polícia no campo inteiro, todos de metralhadora, cachorro e o escambau. O negócio era intimidar.
Quando você chega no Flamengo, tem que entender que o Flamengo é briga, luta e garra.
- Zico
Os caras do Cobreloa tavam loucos, mas o pior foi o Mario Soto. O cara já fazia isso: dava cotovelada, deixava o braço duro na tua cara. Mas ali ele jogou de pedra na mão. Abriu a cabeça do Adílio, quase deixou o Lico cego…
Tudo bem você fazer falta, entrar, chegar junto… Mas não omitir algumas coisas. Eu nunca mais falei e nem aceitei fazer entrevista com ele por causa disso, porque ele mentiu e não confirmou as coisas que fez naquele jogo.
Perdemos de 1 a 0 em Santiago, mas foi a garra que todo rubro-negro tem que ter (falo disso mais pra frente) que manteve a gente em campo até o final. Foi a garra, também, que nos tranquilizou pro terceiro jogo, três dias depois, no Uruguai.
Na manhã seguinte, quando nós acordamos, antes de viajar para Montevidéu, eu chamei todo mundo e pedi uma reunião.
— Olha, a partir daqui a gente tem que esquecer tudo o que aconteceu ontem. Nós temos um time melhor e sabemos disso. A gente só vai ser campeão se jogar bola. Chegar junto, duro e firme a gente já sabe, mas temos que jogar bola. Se a gente jogar bola, a gente não perde esse título.
E foi assim. Dois a zero. Mais dois gols meus. O segundo de falta… A falta da minha vida.
Rio de Janeiro, Brasil - 6 de dezembro de 1981
O destino é mesmo imprevisível. Este seria o mês mais feliz da vida de qualquer rubro-negro daquela época, mas também o mais triste.
De volta ao Rio, o Júnior estava na praia com o Claudio Coutinho, o técnico que tinha construído aquele time, feito do Flamengo tri carioca e campeão brasileiro em 1980.
O Coutinho disse que ia pegar um peixe nas ilhas Cagarras, na frente de Ipanema, e já voltava... Nunca mais voltou.
Ele foi desentocar uma garoupa, perdeu o ar e morreu afogado. Quando o resgate chegou, ele estava no fundo do mar, com o arpão ainda na mão.
Aquilo foi difícil.
O time sentiu, todos sentiram.
Mas o futebol não ia parar. Final do Carioca, campeões contra o Vasco. O segundo título em menos de 14 dias. Dedicamos ao Coutinho.
Tempo pra descanso? Comemoração? Não. Voo para os Estados Unidos e depois pro Japão.
Tóquio, Japão - 13 de dezembro de 1981
Dia frio e de céu azul na capital japonesa. Em campo, um passeio.
O que eu acho que aconteceu ali: o Liverpool não conhecia o Flamengo e nem se preocupou em conhecer. Sabiam quem era o Júnior, eu e mais nada.
Já a gente… Vou contar um segredo aqui. O segredo da nossa vitória.
A gente teve a sorte de ter tido o Coutinho, que tinha um assistente, o Jairo Santos, que, por sua vez, documentou todos os times da Europa. Quando eu digo todos, é todos mesmo! Ele sabia como jogavam alguns clubes europeus que eu nem tinha noção que existiam.
Quando o Coutinho saiu, ele deu todo aquele material pro Carpegiani, que tinha virado técnico no começo do ano.
A gente já sabia como o Liverpool jogava, a linha de impedimento, a linha de quatro… Nós não deixamos de jogar o nosso jogo, mas nos aproveitamos de algumas situações.
Se eles vinham com tudo, eu combinei com o Nunes que era pra ele ficar esperto, que eu ia lançar. Eles fazem a linha, eu meto a bola, e o Nunes entra sozinho.
O primeiro gol eu lanço por cima, Nunes bota pra dentro na saída do goleiro.
O segundo eu bato a falta, a bola quica na frente do goleiro, sobra pro Adílio, que bota pra dentro e sai correndo apontando pra tribuna, onde estava a mulher dele. Eles tinham acabado de noivar.
No terceiro, eu nem olho. Já sabendo que os zagueiros estariam em linha, lanço o Nunes por baixo. Ele correu muito, mas deu só dois toques na bola. O segundo foi o chute.
Tudo resolvido no primeiro tempo.
Muita gente tenta desvalorizar, dizendo que os ingleses menosprezaram a disputa, mas nada disso. O nosso time era bom mesmo, metemos aquele chocolate, e eles ficaram quietinhos lá, né?
Ninguém comenta que eles tinham vantagem física, porque chegaram no meio da temporada, com melhor condicionamento, e a gente estava no final. O desgaste para nós era grande, mas a qualidade do nosso time era ainda maior. Sem contar que sabíamos exatamente cada movimento que eles iriam executar no campo.
É por isso que eu disse que, pra contar a história do Mundial de 1981, só contando tudo desde o começo.
E olha que aqui eu só falei da arrancada, dos três campeonatos em pouco mais de um mês. Mas eu podia ir ainda mais pra trás: falar de como aquele time começou a vencer o Mundial em 1977, quando o Tita chutou um pênalti pra fora, a gente perdeu o Campeonato Carioca, e depois prometeu que ia vencer tudo que viesse pela frente.
Mas isso fica para uma próxima…
A importância do Flamengo?
Antes de 1980, ninguém ligava para Brasileiro. Antes de 1981, ninguém ligava pra Libertadores e muito menos pra Mundial.
Foi o Flamengo ganhar e as coisas mudaram.
Rio de Janeiro, Brasil - 20 de janeiro de 1982
Isso mesmo, 1982! É importante dizer isso: aquele Flamengo não foi um time de uma ou duas temporadas só. Nós marcamos época. Nós fomos referência para o clube, para o futebol brasileiro.
Sem modéstia, quando a gente jogava pra valer, não tinha adversário. A gente não temia ninguém.
Quer um exemplo? Nosso primeiro jogo depois do Liverpool.
P#rr@, você ganha um título mundial e vai ficar quieto? O bicho pegou, né? Cada um comemorou do seu jeito. Eu viajei pro Havaí, Nova York, uma porrada de lugar… Quando voltamos de férias, descobrimos que só teríamos sete dias de pré-temporada. Botaram a abertura do Campeonato Brasileiro no dia 20 de janeiro, contra o São Paulo, no Maracanã. Tava lotado, era nosso jogo de entrega das faixas de campeão do mundo.
Eu sabia de cor o time do São Paulo, tudo seleção: Waldir Peres, Getúlio, Oscar, Darío Pereyra e Marinho Chagas; Almir, Renato e Everton; Paulo Cesar, Serginho e Mario Sergio.
O São Paulo deu um baile. O primeiro tempo terminou 2 a 0 para eles, mas a gente tinha consciência de que era pra ter sido mais.
“Moçada, que vergonha! Era pra estar quatro, cinco pros caras…”
Esse era o clima no nosso vestiário. No deles, pelo o que soubemos depois, o Serginho virou para o Mario Sergio e disse: “Esse daí que é o time do Flamengo? Esse que é o campeão do mundo?”.
E o Mario Sergio respondeu: “Calma! Espera que tem mais 45 minutos”.
Ele estava certo. Quando nós entramos no segundo tempo e fomos para a pressão, o campo inclinou pro São Paulo.
Viramos para 3 a 2. Era o começo da caminhada para o bicampeonato. Depois de ganhar o mundo, a gente sabia que o torcedor do Flamengo não aceitaria nada menos que ser o maior do país.
Rio de Janeiro, Brasil - 13 de dezembro de 2021
Pro meu pai, o Zizinho foi o melhor jogador que ele viu. Ele respeitava o Pelé, mas, para ele, o Zizinho tinha sido o maior. A gente ouvia isso o tempo inteiro em casa.
Um dia fui encontrar meu irmão Edu no América, onde ele jogava e era treinado pelo Zizinho. Eu já tava no Flamengo nessa época, ele me pegou de lado e falou com aquela voz grossa:
— Garoto, vou dizer uma coisa: eu já vi aí que você tem uma boa técnica e tal, mas o Flamengo não é só isso, não, viu?
A naturalidade com que o Seu Zizinho dizia isso era impressionante, e eu carreguei o último conselho dele pelo resto da minha trajetória no clube:
— O Flamengo é raça, gana, tem dias que a bola não tá boa, tá passando por baixo… Nesse dia, você sai correndo, dá carrinho, faz o cacete, porque aquela torcida vem contigo e daqui a pouco você melhora o seu jogo.
Ali eu aprendi uma coisa que não sabia sobre o Flamengo… A filosofia do clube. Ao entender isso, você se torna merecedor do apoio que vem da arquibancada e do respeito dos seus companheiros.
O Mozer conta uma história nesse sentido. Ele tinha saído do treino, aí foi tomar banho e, quando terminou, eu estava dentro do campo batendo falta, sozinho, não tinha ninguém.
Ele resolveu que não ia embora, botou a roupa de novo e ficou de short, observando:
“Se o cara tá aqui treinando, por que eu vou embora?”
Flamengo é isso. Mas não só.
Uma hora antes do jogo contra o Liverpool, o time todo tava fazendo um sambinha debaixo de uma arquibancada do estádio nacional de Tóquio pra aliviar a tensão.
Quando eu fui eleito o melhor em campo na final, ganhei um Toyota Celica que tenho até hoje, mas só fiquei com ele porque paguei o valor de mercado do automóvel e dividi entre todos os jogadores.
No avião a caminho de Tóquio, inventamos para o Peu que só passava na imigração do Japão quem não tivesse bigode. Ele, com medo de ser verdade, pediu ao comissário o aparelho de barbear para raspar o bigodinho. Hahahahaha!
Flamengo é garra, luta, briga...
E amizade, pô!
É isso que eu gostaria de dizer nesses 40 anos de 81.
O mais bonito disso tudo é recordar que ganhei tantos títulos no Flamengo ao lado dos meus amigos. E de uma Nação que, de certa forma, se tornou a extensão da minha família.
Morando do outro lado do planeta, direto eu encontrava torcedores japoneses que ainda se lembram do nosso time e da nossa conquista. É muito simbólico que eu esteja aqui, retornando de mais uma jornada no Japão e escrevendo isso pra você nesta data tão especial, torcedor rubro-negro.
Lá de longe, eu continuava me emocionando quando via nosso povo na TV cantando que o “3 a 0 no Liverpool ficou marcado na história”. E continuo tendo certeza que, mesmo depois de tanto tempo, nada mudou. Que aquele mês de dezembro ainda não acabou.
A maior torcida do universo.
O mais querido da América.
O maior clube do Brasil.
E no Rio? “Não tem outro igual. Só o Flamengo é campeão mundial.”