Detalhes
A gente joga futebol profissional o quê, uns 15 anos? Dezesseis? Poucos aguentam vinte. O tempo é tão curto e tudo é tão intenso que se você não abraça os detalhes chega no fim achando que não fez nada.
Detalhes. A maravilha do futebol, toda ela, está nos detalhes.
Precisa olhar além dos resultados, dos títulos e do dinheiro pra enxergar. Eu tive a sorte de aprender a ler os detalhes muito cedo, numa tarde ensolarada de domingo, dia 3 de outubro de 1993, a caminho do Pacaembu.
Uma semana antes eu tinha feito 17 anos. E um mês antes, aos 16, estreado no profissional num Corinthians x Cruzeiro no Mineirão. Nesse dia, do outro lado estava um tal de Ronaldo. Ele também tinha 16, era fininho e não jogou bem. Eu mal podia imaginar que alguns anos depois nós nos reencontraríamos na Inter de Milão e eu testemunharia os detalhes sobrenaturais que aquele moleque carregava em cada arrancada, cada pedalada, cada chute no gol e que o tornaram O Fenômeno.
Mas naquele 3 de outubro de 1993 os detalhes que me emocionaram e fizeram de mim o jogador que eu fui, e o homem que eu sou, eram, digamos, mais terrenos. Nós enfrentaríamos o Flamengo e seria a minha primeira partida diante da nossa torcida desde que o saudoso Mário Sérgio me puxou do terrão. A gente concentrava no hotel San Raphael, no Largo do Arouche. Eu estava eufórico e atento. Logo depois do almoço, o ônibus do clube encostou, todo mundo subiu e eu sentei numa poltrona da frente, onde iam os novatos. Eu e meu walkman tocando Iron Maiden no talo, rumo à viagem mais reveladora da minha vida.
Quem conhece São Paulo sabe: é um trajeto curtinho. Saindo do Arouche, passa por baixo do Minhocão, pega a rua das árvores cujo nome eu não vou dizer aqui, depois vem a Praça Marechal Deodoro, então uma curva à esquerda e pronto: Avenida Pacaembu. Só continuar reto toda vida até o portão do estádio. Menos de 15 minutos, mas pra mim se tornou um caminho infinito — sinto que estou nele até hoje.
São os detalhes que eu não consigo esquecer nem deixar de sentir. Quando o ônibus fez a curva e entrou na Pacaembu, pela janela eu vi os corintianos nas calçadas indo pro jogo. Uns de cadeira de rodas, outros de muleta, muitos de chinelo, alguns descalços, preto, branco, japonês, ruivo, alemão, gordo, magro, alto, baixo, senhoras de idade, muita criança no ombro do pai…
Pô, esse mar de gente… A maioria deve estar sacrificando boa parte do salário pra ver a gente hoje, foi a primeira coisa que eu pensei, já muito emocionado.
Imediatamente apertei o pause no walkman, tirei o fone e tentei entender porque aquela cena mexia tanto comigo.
Bem antes de avistar a Praça Charles Miller eu já tinha compreendido: aqueles caras eram eu. Eram a minha mãe, uma corinthiana que chorou na saída do Neto como se fosse velório de um parente. Eles eram o meu pai, que me ensinou que “se não é pra jogar com intensidade, melhor nem começar”. Eram os meus amigos de Guarulhos, que chutavam bola comigo na rua, uma bola que eu não tirava do plástico pra não sujar.
Se fosse pra resumir a minha jornada no Corinthians, foi a história mais simples de todas: uma história de amor.
- Zé Elias
Portanto, eu sabia, de berço, o quanto uma vitória do Corinthians nos fazia bem. Ou a simples esperança de uma vitória. Aí pensei uma segunda coisa: Bom, se dentro de campo nem tudo eu posso controlar, tem algo que só depende de mim: correr, brigar, me esforçar até a última gota de suor por esses caras.
Nós ganhamos do Flamengo por 1 a 0, gol do Rivaldo. Eu joguei os 90 minutos percebendo que a torcida vibrava nas divididas que eu ganhava, nos desarmes que eu fazia, nos carrinhos e nos chutões que eu dava. Ali eu entendi o que significa representar o Corinthians.
Se eu me vejo nesses caras na calçada e na arquibancada do Pacaembu, eles também se veem em mim, o moleque raçudo da camisa 5. Eu sou eles dentro de campo, c****!
Essa identificação marcou a minha história no Corinthians, consolidou o meu jeito de jogar e o meu caráter. Porque eu passei a me alimentar disso e nunca mais parei. Ao logo de toda a minha carreira foi o que me fez entrar confiante no jogo, fosse no Pacaembu, na Alemanha, na Itália, na Grécia, na Vila Belmiro ou em qualquer outro canto do planeta aonde o futebol me levou. Me sinto privilegiado e agradeço demais. Eu fui feliz jogando bola porque em todos os lugares eu fui o “Zé Elias do Corinthians”.
O Zé da Fiel.
Minha relação formadora e transformadora com o Corinthians começou no dia 22 de agosto de 1982. Não esqueço a data porque era o aniversário da Lady, a nossa cachorra dobermann, e durante muito tempo a minha família comemorou as duas coisas juntas. Eu tinha cinco anos e a minha vida era bola. Jogava na rua, na garagem de casa e na Olivetti, onde meu pai trabalhava. Cinco anos só, um pirralho. Mas num desses jogos na Olivetti o pai de um amigo virou pro meu e falou:
— A esquerda do seu moleque é boa. E ele tem uma gana que não é normal nessa idade. Leva ele pra fazer um teste no Corinthians.
Eu fiz o teste, passei e, no dia 22 de agosto de 1982, um domingo de manhã, joguei a minha primeira partida pelo futsal do Corinthians. Foi contra o Paineiras, no Morumbi, e nós ganhamos por 4 a 0. A minha estrada corinthiana começou ali e nela eu prossegui mesmo depois de “sair” do clube, aos 19 anos (ponho entre aspas porque quem viveu realmente o Corinthians nunca sai dele).
Dos 5 aos 12 eu joguei só futsal. Dos 12 aos 14, futsal e campo. Mas aos 15 eu fui jogar futsal pela GM, que pagava um salariozinho que me permitia ajudar em casa. Família de operário, três filhos, classe média baixa, a gente vivia no osso como a maioria dos brasileiros. Então, eu parei de estudar e fui morar praticamente dentro do transporte público. De manhã e à tarde treinava campo no Corinthians, à noite futsal na GM.
Entre um e outro, muito ônibus, muito trem. Eu saía de casa cinco da manhã e voltava meia-noite. De segunda a segunda. Depois de um ano nessa rotina, sem vislumbrar no futebol de campo a chance de ter a profissão que o futsal me oferecia, eu decidi parar. Isso foi em julho de 1993 e eu nem suspeitava do que estava pra vir só dois meses depois. Exausto e frustrado, falei pra minha mãe:
— Mãe, vou parar de jogar no campo e deixar o Corinthians. Melhor ficar só no futsal na GM. Não consigo me dedicar do jeito certo aos dois.
E ela, amorosa e corinthiana como sempre:
— Por que você não continua pelo menos até o fim do ano? Se no Corinthians não der em nada até o fim do ano, aí você sai.
Tá bom. Aí eu fui pedir uma licença de três meses no Corinthians, pra disputar o Brasileiro juvenil de futsal pela GM. Vetaram, mas eu fui mesmo assim. Quando voltei, gancho: suspenso por tempo indeterminado.
Mesmo afastado, me convocaram para uma seletiva na Seleção Brasileira sub-17 e o Corinthians nem me avisou. Perdi a seletiva. O futebol de campo ia se tornando uma desilusão, em que eu já não via muitas perspectivas. Mas no futsal eu continuava arrebentando. Num jogo da antiga Copa Dan’Up, contei a um repórter da Jovem Pan que eu também jogava campo, mas estava suspenso. Expliquei o que estava acontecendo e o Milton Neves e o Flávio Prado descascaram os dirigentes do Corinthians no ar, ao vivo. Naquela mesma noite, quase uma da madrugada, o telefone toca lá em casa. Era um diretor do Corinthians:
— Amanhã você vai ser reintegrado. Pode ir treinar direto com os juniores.
Desliguei o telefone e vi a minha mãe com um sorriso de orelha a orelha. As mães sentem as coisas. E a minha sentiu que uma mudança grande em nossas vidas tinha começado. Eu era juvenil, passei a treinar com os juniores e, uma semana depois, o Márcio Araújo, que era o nosso técnico, apontou pra cinco moleques no treino:
— Você, você, você, você e você. Tragam o RG amanhã, que vocês serão inscritos pra jogar o Campeonato Brasileiro pelo profissional.
Eu não estava acreditando. Ontem eu achava que ia deixar o Corinthians, hoje eu vou jogar o Brasileiro no time profissional. O que será que vem amanhã? Bom, o amanhã me trouxe o encontro mais feliz que o futebol me proporcionou, com o Mário Sérgio, o seu Mário, rei do gatilho. Ele tinha acabado de assumir o time e foi assim o meu primeiro treino com ele:
— Cadê o volante que veio do júnior?
— Tô aqui, professor.
— Como é teu nome?
— José Elias Moedim Jr., mas me chamam de Elias.
— Elias não. Já tem um Elias na lateral-esquerda. Você vai ser Zé Elias.
Treinei 20 minutos entre os reservas, o seu Mário parou o coletivo e me deu o colete de titular. No primeiro lance, roubei uma bola, toquei no Rivaldo, gol. No segundo, dividi, fiquei com ela, avancei e me derrubaram. O Válber cobrou a falta, gol. Acabou o treino, veio o seu Mário:
— Tá tudo bem, garoto? Como é que você está se sentindo?
— Tô bem, professor. Tudo certo.
— Tá com dezesseis, né?
— Sim, senhor.
— Dezesseis anos pra mim já é homem. Vou te escalar de titular contra o Cruzeiro na terça-feira, nossa estreia no Brasileiro. Tua missão é não deixar o Marco Antônio Boiadeiro encostar na bola, tá bom? Só isso.
— Sim, senhor.
A partida no Mineirão aconteceu no dia 7 de setembro, aniversário do seu Mário. Mas quem distribuiu presentes fui eu. No final do primeiro tempo, das dezesseis faltas cometidas, oito eram minhas, seis no Boiadeiro. Ele pegava a bola e eu chegava atropelando. Mas apanhei também: tenho até hoje a marca do pisão que ele me deu.
Vencemos por 2 a 0 e eu, empolgado mas inseguro, me perguntava aonde aquilo tudo ia me levar. Por isso chorei na saída do Mineirão quando me deparei com a resposta. Vi o meu pai parado perto do nosso ônibus. Ele tinha ido de Guarulhos a Belo Horizonte pra me ver jogar. A gente se deu um abraço longo e calado. Mesmo sem trocarmos uma palavra, foi como se o meu pai me dissesse: “Confia em você, filho. Confia, que vai dar tudo certo”.
Eu confiei. Demais. Hoje eu vejo os vídeos daquela época e me espanto comigo mesmo. “Mas que moleque abusado. Folgado! Como é que entra numa dividida dessas?! Poxa, que carrinho foi esse só pra salvar uma bola na lateral?! Tá maluco?” A verdade é que a camisa do Corinthians virou a minha roupa do dia a dia, o meu moletom confortável, pau pra toda obra.
Dentro dela eu me sentia à vontade. Podia exercer a profissão que eu amava e ser eu mesmo: um garoto do povo defendendo o time do povo. Eu mal consigo explicar a dimensão disso. Precisa ter vivido pra entender.
No ano seguinte, em 1994, eu me tornei o primeiro jogador da história convocado por três seleções ao mesmo tempo: sub-20, pré-olímpica e principal. Quem fez essa pesquisa e me contou foi o professor Celso Unzelte, a maior enciclopédia corinthiana que existe. Nessa mesma temporada, meu aniversário de 18 anos caiu num dia de Corinthians x Criciúma, no Pacaembu. Assim que eu entrei no campo, um cameraman da Globo me falou: “Zé, a torcida pediu pra você ir ali na frente da arquibancada um minutinho”. Eu corri até lá e, quando eu chego, o estádio inteiro canta o “Parabéns” pra mim. Não parece nada demais, só eu sei como aquele gesto bateu em mim.
Foi uma das maiores emoções que eu senti no futebol, tão forte quanto receber a medalha de bronze e ver a bandeira brasileira subir na Olimpíada de Atlanta, em 1996. Aquele “Parabéns a você” cantado por 40 mil pessoas me fez entender a responsabilidade gigantesca de carregar o nome que aquelas pessoas me deram: o Zé da Fiel.
Com o tempo eu percebi que só uma coisa me fazia tão feliz quanto ser querido pela torcida do Corinthians: ser odiado pela torcida do time de verde. Eu amava quando entrava em campo e eles me xingavam, me cuspiam, urravam de raiva. Isso só me deixava mais folgado, ou seja, me fazia correr mais e entrar mais confiante nas divididas.
Lembro que na final do Campeonato Paulista de 1995 contra eles, antes do jogo começar, eu colei no Edilson Capetinha:
— Edilson, te cuida porque hoje eu vou te matar.
— Mata nada, moleque. Tu não mata nem barata.
— Eu não vou deixar você ver a cor da bola.
E ele não viu mesmo. Eu ganhei todos os lances. Não estou exagerando. Recentemente revi a partida inteira com meus filhos e até brinquei com eles: se vocês acharem uma bola que o papai tenha perdido nesse jogo, uma bolinha só, eu banco uma semana inteira de hambúrguer pra vocês. Eles estão procurando até agora. E não vão achar.
Enfim, se fosse pra resumir a minha jornada no Corinthians, que vivi intensamente dos 5 aos 19 anos, foi a história mais simples de todas: uma história de amor.
Depois fui jogar na Europa, fiquei lá oito anos direto, e o Corinthians esteve o tempo todo comigo. Foi até engraçado quando cheguei no Bayer Leverkusen. No primeiro jogo eu vi o nosso zagueiro dando carrinhos no aquecimento. No aquecimento! Ele jogava a bola, corria e pá, carrinho! E repetia aquele negócio inúmeras vezes.
Minha história no futebol só se completou quando eu voltei ao Brasil, pra atuar pelo Santos.
Pensei: Ah, eu tô em casa! Qualquer apreensão que eu estivesse sentindo de começar uma nova vida fora do meu ninho, numa língua que no começo eu não entendia, desapareceu ali. A Fiel não estava, mas o Zé da Fiel sim. Isso me acalmava e me dava confiança. Era o que de mais genuíno eu carregava dentro de mim. Os caras do Leverkusen sacaram. Toda semana o preparador físico colava no meu armário a foto de um jogador do time que iríamos enfrentar:
— Krasimir Balakov, do Sttutgart. Esse é seu.
No dia seguinte, outra foto do mesmo cara, mas com uma camisa diferente. E assim todos os dias até o jogo.
— Krasimir Balakov. É seu.
— Tá bom, eu já entendi. É o mesmo cara de ontem, de anteontem, de todos os dias, só a cor da camisa mudou.
— Sim, é o mesmo, só que ele faz coisas diferentes toda hora durante o jogo. Então você deve prestar atenção nos detalhes.
Os detalhes de novo. Foi abraçado a eles que eu joguei no Leverkusen, na Inter de Milão, no Bologna, no Olympiakos e no Genoa, ao lado de caras como Ronaldo, Simeone, Zanetti, Zamorano, Bergomi, Giovanni e tantos outros. Mas a minha história no futebol só se completou quando eu voltei ao Brasil, pra atuar pelo Santos, talvez o clube mais repleto de detalhes onde um jogador pode ter a felicidade de jogar.
No Santos, especialmente na Vila Belmiro, pra quem presta atenção e tem coração, os detalhes são diferentes de qualquer outro lugar. Jogar pelo Santos na Vila é fazer parte da história do esporte mais espetacular já inventado.
Foi ali que o futebol brasileiro passou a ser o que é. O Santos e a Vila Belmiro estão pro futebol assim como, sei lá, o Santos Dumont está pra aviação. E por mais Zé da Fiel que eu seja, agradeço todos os dias por ter vivido um pedacinho pequeno da história do Santos, onde conquistei meu único título de campeão brasileiro. Não dá pra jogar no Santos sem se sentir um cara abençoado. Sem se emocionar com os armários do Pepe, do Coutinho, do Zito e do Pelé no vestiário. Ninguém guarda nada neles. Eles estão lá como um altar, pra serem lembrados e reverenciados enquanto esse planeta existir e depois disso também.
Assim que cheguei à Vila, eu lembrei de um comentário que um dia ouvi do Fachetti, ídolo histórico da Inter, lá em Milão: “O melhor e o pior de jogar contra o Pelé era que ele hipnotizava a gente. Eu não sabia se jogava ou admirava”.
E, enfim, no dia 13 de outubro de 2005, uma quinta-feira à noite, faltando duas semanas pro meu aniversário de 29 anos e doze anos depois daquela tarde ensolarada no Pacaembu, lá estava eu na Vila Famosa passando a minha trajetória a limpo antes da bola rolar: sim, eu podia agradecer por tudo que vivi no futebol. Dessa vez eu vestia a camisa do Santos do Pelé, na casa do Pelé, e ia enfrentar pela primeira vez o meu amado Corinthians.
Não sei pro resto da humanidade, mas pra mim foi um jogo memorável. Tomei um cartão amarelo e o resto são detalhes. Inesquecíveis detalhes.