De Volta à Estaca Zero
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Eu não podia imaginar que aquela luta me destruiria por inteiro.
Levei muita porrada, mas o estrago físico não era nada perto do que a derrota causou dentro de mim.
Antes de subir no octógono, ninguém faz a menor ideia do que significa lutar no UFC. Lembro da cena do Mestre me puxando no canto pra dar a notícia. Ele tava tão afoito que parecia que tinha morrido alguém.
Quando me perguntou se eu aceitaria enfrentar a Liz Carmouche, minha primeira reação foi: “Meu Deus do céu! Entrei para o UFC!!! Como é que conseguiram enxergar uma pessoa que veio lá da roça, do interiorzão do Paraná?”.
É louco como a melhor notícia da sua vida pode se transformar, em tão pouco tempo, na maior decepção. A verdade é que eu não tinha me preparado para perder logo de cara.
Foi um negócio que acabou comigo.
“Você treinou tanto... Pra isso, Jéssica?”
Era assim que eu me culpava, que insistia em me castigar pelo fracasso. Estava acabada, porque sabia que tinha voltado à estaca zero, ao estágio em que eu era apenas a ‘Jéssica da farmácia’.
De onde eu venho, luta não era coisa de menina.
Em Umuarama, eu jogava futebol, que, na cabeça da minha família, também não era coisa de menina. A bola era minha maior paixão. Eu queria aparecer na TV e ser igual à Marta. Levava jeito, até. Cheguei a receber proposta para jogar no São Paulo.
Minha mãe não deixou. Ela tinha medo de alguém me sequestrar ou acontecer algo de ruim. Como sempre a respeitei, acabei recusando a proposta. Só que eu precisava encontrar outro caminho.
Mas qual caminho?
E, então, a luta aparece.
Desde pequena, eu brincava de lutinha com meu irmão. Certa vez, na escola, ele foi ameaçado por um traficante, o menino mais perigoso do bairro. Eu entro no meio da briga, encho o rapaz de bicudo e acerto uma mãozada na cara dele, que começa a sangrar.
“Pronto, agora eu tô lascada”, pensei.
E não é que resolveu? Ele ficou com fama de quem apanhou de menina. Nunca mais criou confusão. Nessa época, eu entrei para um projeto social de judô. O professor, que me via derrubando e finalizando os meninos, me chamou para treinar jiu-jitsu. Foi assim que começou minha carreira como lutadora.
Bom, na verdade, começou de um jeito meio desastrado…
No meu primeiro campeonato, eu tava ganhando a luta, de boa. A adversária me pegou na chave de braço e, como não tinha experiência, dei um bate-estaca.
Detalhe: é proibido dar bate-estaca no jiu-jitsu. Ninguém me contou.
Hahaha.
Fui desclassificada, perdi a luta praticamente ganha por causa de um golpe ilegal e o “Bate Estaca” pegou.
No começo eu não gostava do apelido, mas o que mais me incomodava era chegar num campeonato e não ter nenhuma outra menina da minha categoria. Ganhar medalha sem lutar é humilhante!
Eu era a única mulher fazendo jiu-jitsu na academia. Havia mais meninas da cidade que se interessavam pela luta, mas elas desistiam de treinar porque a mulher que entrava numa arte marcial era tachada de sapatão, gay, lésbica...
As coisas mudaram quando eu conheci o Mestre Paraná. Um cara que não olha para as meninas como coitadinhas, mas como verdadeiras lutadoras. Integrei a primeira turma feminina da academia dele, a PRVT.
Até então, eu treinava com os meninos. A gente se rachava na porrada. Já o treinamento com meninas é bem diferente. Rola um equilíbrio maior de força, peso, altura, e isso faz com que a gente desenvolva nossa técnica.
Depois do meu bate-estaca frustrado, veio um convite para uma luta de MMA.
— O que é isso, Mestre?
— MMA é uma junção de todas as artes marciais. Pode dar soco, chute, colocar pra baixo, bater no chão…
— Hmm, interessante. Vamos fazer, né?
Meu olho até brilhou!
Só tinha um problema: teria de perder 10 quilos em um mês pra bater o peso.
Eu trabalhava como entregadora numa farmácia. Era gordinha, pesava uns 70 quilos e comia muito. Mas nada tirava da minha mente que eu conseguiria. Na hora do almoço, levava uma tigela enorme de alface, dois bifes de frango e três batatinhas doces. O pessoal da farmácia gritava comigo na frente dos clientes, dizendo que aquilo era loucura, que eu ia morrer.
“Ai, meu Deus, será?”.
Chega o dia da luta. Sou a primeira a entrar no ringue.
E aí apresentam minha adversária: “Da cidade de Maringá, bicampeã paranaense de jiu-jitsu, campeã mundial de muay thai, campeã de não sei das quantas...” Eu falei pra mim mesma:
“Caramba, vou tomar um cacete. O que é que eu vim fazer aqui?”.
Respirei fundo e segurei a onda. “Posso até perder, mas que ela vai sair com os dois olhos roxos, ah vai!”
Dei uma joelhada trocada que tinha aprendido na semana da luta e ela já caiu na grade. Comecei a encher a menina de soco. A mão que ia era a mesma que voltava, e ‘croc’. Foi direto pro chão. Ela saiu tontinha do primeiro round. E eu com o cabelo igual ao do Conan, o Bárbaro.
No começo do segundo, o juiz termina a luta. A galera inteira no ginásio gritando “Jéssica! Jéssica! Jéssica!”. Olho pra arquibancada e vejo minha família vibrando. Naquele momento eu cheguei à conclusão: “É isso que eu quero pra minha vida, bicho!”.
Quanto mais eu lutava, mais evoluía. Todo mundo dizia que um dia eu lutaria no UFC. “Tá maluco? Nem tem categoria feminina.” Não botava fé, mas, nos treinos, eu continuava cada vez melhor.
O pessoal da farmácia gritava comigo na frente dos clientes, dizendo que aquilo era loucura, que eu ia morrer.
- Jéssica (Bate Estaca) Andrade
Fui pra Rússia lutar contra a Milana Dudieva. Essa era sinistra. Vinha de oito vitórias seguidas. Nos meus cálculos, eu tinha somente 1% de chance de ganhar. E acho que ela também pensava assim. Tava me tratando super bem, só faltou me abraçar. Eu ali, com minhas roupas velhinhas e furadas, só matutando: “Deixa ela...”
Finalizei a Dudieva no segundo round. Tenho certeza que, nesse dia, o UFC soube da minha existência.
Já tinham criado a categoria feminina. Uma luta da Ronda Rousey caiu, a Miesha Tate subiu para cobrir a ausência e a Liz Carmouche ficou sem adversária. Quando o Mestre me avisou do convite para enfrentá-la, topei na hora. Mas só entendi o tamanho do UFC quando cheguei aos Estados Unidos.
Em Nova York, tinha um pôster gigantesco da luta no Empire State. Andando pelas ruas de Seattle, eu via minha foto estampada nos ônibus. Daí caiu a ficha.
“GENTE, EU TÔ NO CARD PRINCIPAL DO UFC!”
Era acostumada a lutar em eventos que não chegavam a ter 500 pessoas na arquibancada. Do nada, eu me vi num ginásio com milhares de torcedores. Me arrepio só de lembrar da multidão gritando meu nome.
“Eita, como é que essa gente toda me conhece?”
Não sabia se ria, se chorava ou se gritava. É uma adrenalina diferente de tudo que já tinha sentido. Em instantes, eu me tornaria a primeira brasileira a pisar no octógono, na primeira luta da história entre duas mulheres declaradamente homossexuais. Muita coisa envolvida, sabe?
De alguma forma, esse turbilhão me desconcentra.
No primeiro round, eu chego a sentir o gosto da vitória, quase finalizo. Sem mais nem menos, o jogo vira. Me dá um branco. Parece que fui transportada para outra dimensão.
Nesse espaço sombrio e vazio, estamos apenas Liz e eu.
Silêncio total.
Olho pra ela e não enxergo torcida, juiz, córner… Nada. Só vejo golpes explodindo em minha direção.
Viro de costas e tomo cotovelada na orelha. Viro de frente e tomo soco na cara. Apanho, apanho, apanho e, simplesmente, não sei o que fazer. Ela me coloca pra baixo, e eu viro passageira da agonia.
Quando volto à realidade, já não sentia meus braços. Tava tudo morto, dormente. Eu não ia desistir. Ficaria apanhando ali até acabar o round. Mas o juiz parou na hora certa.
“Eu cheguei ao UFC e fracassei.” Não tem sensação pior que levar um tombo bem no auge da carreira.
Volto pra casa desolada, com a certeza de que deveria ter escolhido outra profissão ou ficado quietinha na farmácia. Só queria receber o conforto da minha mãe.
“Como assim? Você perdeu? Só treina, só faz isso da vida.”
Escutar isso dela foi uma pedrada. Eu chorava o dia inteiro, lembrando da derrota, de como perdi para mim mesma.
De como eu fui incapaz.
Minha família não compreendia o que era o MMA. Por isso, não me deu o apoio que eu precisava.
Meu pai tampouco foi aquele cara que me incentivou 100%, embora gostasse de me ver lutar. Pela condição financeira ruim, acompanhou pouco da minha ascensão, poucas lutas minhas. Descobri que ele tinha traído minha mãe, que tinha outra família. Isso me trouxe muita tristeza.
Quem fez papel de pai, pra me tirar do fundo do poço, foi o Mestre. Eu queria parar com a luta. Poderia até continuar treinando, mas tinha me convencido de que não lutaria mais.
As mesmas pessoas que antes diziam “a Jéssica vai arrebentar” passaram a me criticar. Comentavam que eu não tinha profissionalismo, não tinha técnica, não estava à altura do UFC. Aquilo me corroía por dentro. Mas o Mestre falava para eu não dar ouvidos.
Ele foi minha alavanca.
Arrumou uma psicóloga para mim no Rio de Janeiro. A gente conversava todo fim de treino. E eu desatava a chorar. Não me considerava boa o suficiente, mas ela me forçava a acreditar: “Jéssica, fica calma, você vai ser a melhor do mundo”. A psicóloga me fez enxergar a luta de um modo menos destrutivo. Comecei a me valorizar mais. Quando achava que não tinha ido bem no treino, permanecia focada no dia seguinte.
“Cara, hoje eu vou ser melhor do que ontem. Não melhor que ninguém, mas melhor que eu mesma.”
Três meses depois da derrota pra Liz, marcaram uma nova luta. Venci a Rosi Sexton e bati o recorde de socos em três rounds. Graças às pessoas que me colocaram pra cima no meu pior momento, eu estava novamente de pé. Mais forte, mais estável, mais confiante.
Numa certa altura, eu já tinha 10 lutas de UFC. Ao mesmo tempo, não tinha dinheiro pra nada, nem casa pra morar. E aí eu ganho um presente inesperado: surge a Fernanda.
Todo mundo pensa que ela me pegou no bem-bom. Lutadora do UFC, cheia da grana, carro importado… Imagina! Nós passamos fome juntas. Várias vezes, durante a semana, a gente se perguntava: “E aí, o que vamos comer?”. Nenhuma de nós tinha a resposta.
Ela topou morar comigo em casa de favor. A gente dormia num colchãozinho de solteiro, dividindo um lençol e um travesseiro. Cansada daquilo, a Fernanda resolveu ir embora. E eu implorei: “Fica, prometo que vai dar tudo certo”. Ela é bióloga, mas abandonou o sonho dela para cuidar do meu, para me ajudar a pagar as dívidas, a comprar uma casa pra gente e outra pra minha mãe.
Essa é a mulher da minha vida!
Não existe mais Jéssica sem Fernanda, nem Fernanda sem Jéssica.
Sem ela, eu não teria dado uma segunda chance ao meu pai. Nem a terceira, nem a quarta, nem a quinta… Sem ela, minha mãe não entenderia o que é o MMA, muito menos o que é a rotina de uma lutadora. Sou grata por ela não ter me deixado sair de casa para jogar futebol. Por sempre rezar por mim e hoje, sim, me dizer as palavras que eu queria ter escutado depois da minha primeira luta.
Fernanda me ajudou a dar valor à família, e a entender como ela é a base de tudo.
Sem ela, minha mãe não entenderia o que é o MMA, muito menos o que é a rotina de uma lutadora.
- Jéssica (Bate Estaca) Andrade
Também foi ideia dela o cocar. A cada luta, eu levo as cores do Brasil e dos orixás que me protegem. Ao subir as escadas do octógono, sinto a energia do povo brasileiro, da minha religião — o candomblé —, das minhas raízes indígenas e dos meus ancestrais.
Vocês não têm noção da força que isso me traz.
Foi essa energia que me encheu de coragem no dia em que conquistei o cinturão. Antes da luta no Rio de Janeiro, entreguei uma rosa para a Rose Namajunas. Ela poderia ter escolhido qualquer lugar do mundo pra lutar comigo, mas optou por lutar na minha casa, diante do meu povo e da minha torcida. Um gesto muito nobre da parte dela.
Mas, quando a gente entra no octógono, o único pensamento é vencer. E eu sabia exatamente o que precisava fazer para sair com a vitória. Também sabia que, ao contrário da derrota na estreia, era uma luta de cinco rounds. Não podia dar tudo no primeiro.
Só não adivinhei que ganharia daquele jeito.
Eu a levanto até a altura do ombro, ela continua agarrando meu braço, faço o movimento pra jogá-la no chão e... Buuum! Ela cai de cabeça, com o pescoço dobrado, e apaga.
Não tem preço ser campeã do UFC no meu país, usando o golpe que carrego no nome. Um bate-estaca épico. Minha maior conquista. Me param até hoje por causa desse feito: “Olha, você é a menina que quase matou a outra, né?”.
Já citei todas as pessoas que foram importantes para o meu ressurgimento. Porém, fiz questão de dedicar o cinturão ao Mestre. A mãe dele era empregada. O pai, pedreiro. Ele poderia ter investido na carreira de atleta, mas desistiu de tudo para virar treinador. Para cuidar da gente. Para que mais mulheres sejam acolhidas no MMA.
Acredito que essa é minha principal missão. Quando a gente fala da PRVT, falamos de empoderamento. Hoje temos mais meninas na equipe do que na época em que comecei. É incrível eu ter me tornado uma referência para elas.
— Pô, que maneiro treinar com a Jéssica Bate Estaca.
— Eu quero ver todo mundo do meu lado no UFC. A gente vai lutar no mesmo card, ganhar um monte de dinheiro, voltar pra casa, levar a mãe no restaurante e pagar a conta. Eu quero que vocês sintam o mesmo prazer que eu sinto no octógono.
Isso é o que sempre transmito às meninas.
Sem a Ronda Rousey para abrir a porta, eu não estaria no maior evento do mundo. Sem a Cris Cyborg, não existiria uma mulher com quatro cinturões em quatro organizações diferentes. Sem a Amanda Nunes, não teríamos uma brasileira campeã em duas categorias.
No dia em que eu parar, quero que outras mulheres olhem para mim e se lembrem: “Cara, a Jéssica era sinistra, engraçada e homossexual. Batia pra caramba e trazia muita alegria pra gente”. Desde que Liz e eu fizemos história, me esforço para mostrar que a bandeira que eu levanto não é a da homossexualidade, mas sim a da felicidade.
Uma lutadora gay e campeã pode fazer enorme diferença na vida das pessoas que têm medo de se assumir, do que os pais vão pensar, do que pode acontecer com elas. Teve uma menina lá do Cazaquistão que me mandou mensagem: “Você é minha inspiração!”. Quantas outras meninas eu posso inspirar?
Assim como a Marta me inspirava no tempo em que queria ser jogadora de futebol.
E como me inspiro nas que vieram antes e desbravaram o caminho para eu chegar até aqui.
Descobri, inclusive, que a inspiração está em todo lugar.
Na expectativa de disputar mais um cinturão.
Na Jéssica que cresceu numa casa de madeira em Umuarama.
Na Jéssica que encontraram lá na roça, no interiorzão do Paraná.
Na Jéssica da farmácia.
Na Jéssica campeã do UFC.
Na Jéssica que não existe sem Fernanda. Ou na Fernanda que não existe sem Jéssica.
No colchãozinho onde choramos juntas.
No amor que nos uniu.
Na volta por cima após a derrota.
No esporte que se tornou coisa de menina. De mulher!
Nos 10 meses que fiquei sem lutar para emagrecer e trocar de categoria.
Nos 50 graus dentro da banheira com sal e álcool antes de bater o peso.
Em todos os sacrifícios que tenho de fazer pela minha profissão.
Todos eles me provam que a melhor versão da Jéssica ainda está por vir. E que, independentemente de ganhar ou perder, sempre haverá um recomeço para quem não desiste de lutar.